Paixão – s.f. Movimento violento, impetuoso, do ser para o que ele deseja. / Atração muito viva que se sente por alguma coisa. / Objeto dessa afeição. / Predisposição para ou contra. / Arrebatamento, cólera. / Amor, afeição muito forte… (Aurélio on line)

 

Quando o jogo acabou, fez-se silêncio. Depois, aplausos. O Mineirão inteiro, de pé, aos prantos, cantou o hino. Era vinte e sete de novembro de dois mil e cinco. O Atlético estava rebaixado para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro.

 

Milton entrou no apartamento cabisbaixo. Nancy estava vendo televisão na sala. Ele lhe deu o beijo protocolar e foi para o quarto. Ela foi atrás.

− Está com fome? Mamãe e o Fred almoçaram aqui. Mamãe trouxe um prato delicioso: galopé.

Milton levantou-se, deu uma bofetada na esposa e saiu sem dizer nada.

Nancy ficou paralisada, olhando para a porta fechada. Nos quatro anos de namoro e nos dois de casados nunca o tinha visto daquele jeito. Já tinham brigado, discutido, mas bater nela era uma coisa que jamais esperou dele. O espanto foi sendo substituído pela raiva. “Se ele pensa que pode me bater está muito enganado.” Sentia uma intensa dor, não no rosto, mas no coração, na alma.

Jantou as sobras do galopé. Olhou sem enxergar para a tevê por horas. Quando o Fantástico começou, ela, já um pouco apreensiva com a falta de notícias do marido, quis ligar para alguém, mas desistiu, não saberia o que dizer sem tornar público o problema. Decidiu aguardar. Tomou um banho demorado. “E se ele não voltar?” Nancy ligou para sua mãe.

− Aconteceu uma coisa horrível, mamãe! Eu e o Milton brigamos − as lágrimas de agonia, que ela tinha segurado, se soltaram de uma vez.

Dona Leonor morava perto, veio socorrer a filha.

− Por que vocês brigaram?

− Ele me bateu.

− Te bateu? O Milton?

− Me deu uma bofetada.

− Assim, sem razão, por nada?

− Por nada, mamãe, eu lhe ofereci galopé, ele me bateu e saiu.

− Ô minha filha, ele devia estar transtornado com a derrota do Atlético.

− A senhora vai ficar do lado dele?

− Galopé, Galo…

− Meu Deus, não tinha pensado nisso. O Galo foi rebaixado, deu no Fantástico.

Ficaram em silêncio.

− Sei que o Milton é doido pelo Galo, mas chegar a esse ponto, me bater!

 

Milton saiu de casa com o coração pesado. Dirigiu a esmo dominado pela fúria. Via e revia, de forma obsessiva, a cena da mulher lhe oferecendo galopé. Ouvia a voz dela, ora com fingida naturalidade, ora com ironia e com sarcasmo. Era inevitável a gozação dos colegas cruzeirenses, mas não esperava isso da própria esposa.

Uma buzinada estridente o trouxe à realidade. Percebeu que estava chegando a Igarapé. Dirigira a esmo e pegara o caminho familiar. Parou no acostamento e ficou olhando a serra, mais imaginando que vendo sua silhueta imersa na escuridão da noite. Sua mente estava vazia. Ouviu então o estalar de uma bofetada. “Eu bati nela! O que deu em mim, como fui capaz de fazer isso?”

Retornou a BH.

Milton chegou sério, deu um ligeiro “boa noite” para a sogra e tentou beijar a mulher. Ela se esquivou.

− Devo-lhe desculpas. Estou envergonhado pelo que fiz, me perdoe.

− Vocês precisam conversar − disse dona Leonor, se retirando.

Nancy o encarou com raiva.

− Você acha que basta um “me perdoe” e está tudo resolvido? Você me bateu!

− Eu daria tudo para não ter feito aquilo. Estava transtornado. Não esperava, jamais, que você me gozasse, indiferente ao meu sofrimento.

O semblante de Nancy se suavizou um pouco.

− Eu não queria te gozar, não percebi, não tive a intenção.

− Sério? O galopé foi pura coincidência? Você é sonsa ou muito desligada.

− Eu sou sonsa, sou desligada e você é um descontrolado. E se eu estivesse te gozando? Isso é motivo para me bater?

− Nada é motivo para te bater. Você tem razão, eu perdi o controle, desatinei. Você não pode imaginar a tristeza que foi o fim do jogo, Nancy. Todo mundo chorando. Eu passei no bar e virei uma, duas garrafas de cerveja. Não quero me justificar, mas eu estava fora de controle. Queria chegar em casa, queria que você me abraçasse, me pusesse no colo. Queria chorar em seus braços até dormir.

Nancy segurou as mãos de Milton. Acariciou-lhe os cabelos. Beijou ternamente seus olhos.

Quando Miltinho fez três meses o Galo foi campeão brasileiro da série b e retornou à elite do futebol brasileiro. No almoço comemorativo foi servido galopé.