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Contos

Paixão

Paixão – s.f. Movimento violento, impetuoso, do ser para o que ele deseja. / Atração muito viva que se sente por alguma coisa. / Objeto dessa afeição. / Predisposição para ou contra. / Arrebatamento, cólera. / Amor, afeição muito forte… (Aurélio on line)

 

Quando o jogo acabou, fez-se silêncio. Depois, aplausos. O Mineirão inteiro, de pé, aos prantos, cantou o hino. Era vinte e sete de novembro de dois mil e cinco. O Atlético estava rebaixado para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro.

 

Milton entrou no apartamento cabisbaixo. Nancy estava vendo televisão na sala. Ele lhe deu o beijo protocolar e foi para o quarto. Ela foi atrás.

− Está com fome? Mamãe e o Fred almoçaram aqui. Mamãe trouxe um prato delicioso: galopé.

Milton levantou-se, deu uma bofetada na esposa e saiu sem dizer nada.

Nancy ficou paralisada, olhando para a porta fechada. Nos quatro anos de namoro e nos dois de casados nunca o tinha visto daquele jeito. Já tinham brigado, discutido, mas bater nela era uma coisa que jamais esperou dele. O espanto foi sendo substituído pela raiva. “Se ele pensa que pode me bater está muito enganado.” Sentia uma intensa dor, não no rosto, mas no coração, na alma.

Jantou as sobras do galopé. Olhou sem enxergar para a tevê por horas. Quando o Fantástico começou, ela, já um pouco apreensiva com a falta de notícias do marido, quis ligar para alguém, mas desistiu, não saberia o que dizer sem tornar público o problema. Decidiu aguardar. Tomou um banho demorado. “E se ele não voltar?” Nancy ligou para sua mãe.

− Aconteceu uma coisa horrível, mamãe! Eu e o Milton brigamos − as lágrimas de agonia, que ela tinha segurado, se soltaram de uma vez.

Dona Leonor morava perto, veio socorrer a filha.

− Por que vocês brigaram?

− Ele me bateu.

− Te bateu? O Milton?

− Me deu uma bofetada.

− Assim, sem razão, por nada?

− Por nada, mamãe, eu lhe ofereci galopé, ele me bateu e saiu.

− Ô minha filha, ele devia estar transtornado com a derrota do Atlético.

− A senhora vai ficar do lado dele?

− Galopé, Galo…

− Meu Deus, não tinha pensado nisso. O Galo foi rebaixado, deu no Fantástico.

Ficaram em silêncio.

− Sei que o Milton é doido pelo Galo, mas chegar a esse ponto, me bater!

 

Milton saiu de casa com o coração pesado. Dirigiu a esmo dominado pela fúria. Via e revia, de forma obsessiva, a cena da mulher lhe oferecendo galopé. Ouvia a voz dela, ora com fingida naturalidade, ora com ironia e com sarcasmo. Era inevitável a gozação dos colegas cruzeirenses, mas não esperava isso da própria esposa.

Uma buzinada estridente o trouxe à realidade. Percebeu que estava chegando a Igarapé. Dirigira a esmo e pegara o caminho familiar. Parou no acostamento e ficou olhando a serra, mais imaginando que vendo sua silhueta imersa na escuridão da noite. Sua mente estava vazia. Ouviu então o estalar de uma bofetada. “Eu bati nela! O que deu em mim, como fui capaz de fazer isso?”

Retornou a BH.

Milton chegou sério, deu um ligeiro “boa noite” para a sogra e tentou beijar a mulher. Ela se esquivou.

− Devo-lhe desculpas. Estou envergonhado pelo que fiz, me perdoe.

− Vocês precisam conversar − disse dona Leonor, se retirando.

Nancy o encarou com raiva.

− Você acha que basta um “me perdoe” e está tudo resolvido? Você me bateu!

− Eu daria tudo para não ter feito aquilo. Estava transtornado. Não esperava, jamais, que você me gozasse, indiferente ao meu sofrimento.

O semblante de Nancy se suavizou um pouco.

− Eu não queria te gozar, não percebi, não tive a intenção.

− Sério? O galopé foi pura coincidência? Você é sonsa ou muito desligada.

− Eu sou sonsa, sou desligada e você é um descontrolado. E se eu estivesse te gozando? Isso é motivo para me bater?

− Nada é motivo para te bater. Você tem razão, eu perdi o controle, desatinei. Você não pode imaginar a tristeza que foi o fim do jogo, Nancy. Todo mundo chorando. Eu passei no bar e virei uma, duas garrafas de cerveja. Não quero me justificar, mas eu estava fora de controle. Queria chegar em casa, queria que você me abraçasse, me pusesse no colo. Queria chorar em seus braços até dormir.

Nancy segurou as mãos de Milton. Acariciou-lhe os cabelos. Beijou ternamente seus olhos.

Quando Miltinho fez três meses o Galo foi campeão brasileiro da série b e retornou à elite do futebol brasileiro. No almoço comemorativo foi servido galopé.

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DEMÔNIOS NÃO TÊM TALENTO

Cláudio vagava sem destino pela cidade. Percebeu que estava perto do hospital. Sem nada para fazer resolveu visitar seu sogro. A enfermeira advertiu:

− Seu Gil está muito agitado hoje.

− Pode deixar, vou com calma.

Abriu a porta e entrou, cautelosamente, Gil batia furiosamente no teclado de seu laptop:

− Esta porcaria não acende.

− Deixe-me ver, Seu Gil, quem sabe eu consigo.

− Fique longe! Ninguém mexe no meu computador.

− Sou eu, Seu Gil, Cláudio.

Depois da doença, Gil ficou agressivo com a maioria de seus parentes, Cláudio era uma das poucas exceções.

− Ah, é você. Veja se consegue ligar esta porcaria de computador.

− Onde está o carregador da bateria?

Gil deu um tapa na cabeça, olhou para Cláudio com um sorriso, abriu a gaveta da mesa, apanhou a peça e ligou o laptop.

− O que o senhor anda escrevendo?

− Umas bobagens, lembranças fugidias. Acho que vou chamar de “Memórias de um Desmemoriado”.

− Posso ver?

− Você pode. Você sabe valorizar um bom texto. − Gil estava naquela fase do Alzheimer em que momentos de lucidez se alternam com o caos da demência.

Cláudio passeou pelos arquivos e ficou triste com a confusão, a falta de sentido das informações que o sogro ia salvando no laptop, reflexo de sua memória, sem nexo, fragmentada. “Que fim melancólico para um grande escritor, autor das novelas de maior sucesso da televisão. A memória é a mina de um escritor, é lá que ele vai buscar a matéria prima para sua obra.” Ficou pensando no vazio da própria mina, após haver revelado algumas pepitas tão promissoras.

Gil havia se deitado e dormia. Cláudio estava para desligar o computador, quando viu um arquivo com o nome de “feito.docx”. Passou as próximas duas horas lendo uma das mais fascinantes histórias que havia conhecido. Com medo de que Gil destruísse aquele tesouro com um comando desastroso, ele salvou o arquivo na nuvem. Saiu silenciosamente.

Em casa, Cláudio acessou o arquivo e leu novamente o texto do sogro. Era uma bela história de amor, abrangendo trinta anos da vida de um casal. O enredo era vinculado a fatos históricos daquele período, o que lhe dava autenticidade e vigor. Os personagens bem construídos pareciam ganhar vida própria. Daria uma excelente minissérie. Só faltava o final.

***

− Como vai, Cláudio, o que você tem feito?

− Ando escrevendo, Haroldo − mentiu Cláudio. Haroldo era um colega de faculdade que se deu bem como produtor de televisão.

− Se você tem uma história de época, pode me interessar. Estou num apuro feio, pois apostei no Wellington para escrever uma minissérie e ele fracassou redondamente. A sinopse era ótima, mas o texto final uma porcaria.

O coração de Cláudio disparou. A novela do sogro atendia aos requisitos apresentados pelo Haroldo. Os demônios se lançaram, sem tréguas, sobre a alma do frustrado escritor.

− Que coincidência, Haroldo, acho que posso lhe tirar dessa enrascada. Vou lhe mandar a sinopse de um dos meus trabalhos.

− Nada de sinopse, preciso de um texto pronto. As gravações começam em quatro semanas.

− Você é um cara de sorte. Tenho uma novelinha quase pronta.

Naquela mesma tarde os dois se encontraram. Haroldo adorou a história.

− E o final, quando você me entrega?

− Em duas semanas.

− Nada disso, você tem cinco dias.

Cláudio gastou os próximos três dias tentando escrever o capítulo final de “Um Amor do Século XX”. Os demônios não têm talento, as Musas se abstiveram, não queriam ser cúmplices. Voltou ao hospital em busca de socorro.

− Como vai, sogrão?

Gil estava alheio, olhando para o nada, através da janela. Cláudio ligou o laptop e deu uma varredura completa nos arquivos. Encontrou um com o nome de “feitofim.docx”. Ao tentar abri-lo o sistema lhe solicitou uma senha.

− Seu Gil, o que tem de tão valioso nesse arquivo feitofim.docx?

− Cogito ergo sum.

− O senhor protegeu o arquivo com uma senha. Qual é a senha?

− Dubito, ergo cogito, ergo sum.

− O senhor está muito filosófico. O que significa “Dubito, ergo cogito, ergo sum”?

− Je pense, donc je suis.

Cláudio se lembrou das lições de francês e digitou como senha: “Descartes”. O arquivo não abriu. Tentou “René”, “Renédescartes”, “René_Descartes”. Fracasso.

− A senha, Seu Gil. Qual é a senha?

Gil começou a cantar uma música gregoriana.

Cláudio voltou para casa desanimado. Passou a noite tentando escrever o capítulo final da minissérie. Levou o resultado de seu esforço para o Haroldo.

− Que porcaria, Cláudio. Nem parece ser do mesmo autor que escreveu este texto maravilhoso.

− A inspiração vem quando ela quer, Haroldo. Preciso de mais alguns dias. Estou muito estressado.

− Sinto muito, cara, mas eu trabalho com prazos. Dou-lhe mais dois dias.

De volta ao hospital, Cláudio levou uma lata de doce de leite, a iguaria preferida do sogro. Quando Gil tentou agarrar a lata, Cláudio a reteve:

− Primeiro a senha do arquivo “feitofim.docx”.

− Jota ó um nove três zero.

Cláudio digitou jo1930. Nada.

Depois de tentar todas as variações com letras maiúsculas e minúsculas, ele desistiu.

De madrugada o hospital comunicou a morte de Gil. A tristeza de Cláudio enterneceu sua esposa.

− Agora entendo por que papai foi amável com você até o fim. Você foi um verdadeiro filho para ele.

− Você não sabe o que está dizendo − disse Cláudio, esquivando-se do abraço da esposa.

Um padre chegou para realizar as exéquias do ex-colega de seminário. Cláudio lhe disse que Gil, nos dias anteriores repetia seguidamente: “jo1930”

− “Jo 19,30” é um versículo do Evangelho de João: ‘Ele tomou o vinagre e disse: “Tudo está consumado.” E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.’

− Obrigado, padre, parece que ele estava prevendo o seu fim.

Assim que teve oportunidade, Cláudio correu para o computador e tentou todas as variações da expressão “Tudo está consumado” e fracassou sempre. Foi ao hospital buscar os pertences do sogro. Entre eles havia uma bíblia em latim.

Cláudio digitou: Consummatum est.

A minisérie “Um Amor do Século XX”, de Gil Cardoso, foi um retumbante sucesso. Cláudio se tornou o administrador das obras do sogro.

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SOL

Estava casado com Cleonice há 15 anos. Nossa vida transcorria numa normalidade que me agradava, pois sou uma pessoa tranquila, um tanto convencional; pelo menos, naquela época, achava que era. A objetividade de Cleonice combinava com meu temperamento e os dias se sucediam numa confortável monotonia. A decisão de ir a Buenos Aires obedeceu a razões práticas: eu tinha um negócio a tratar na cidade, a estada seria paga pela empresa, a única despesa seria a passagem para minha esposa.

Ir a um espetáculo de tango é uma obrigação para todo turista em primeira viagem à capital portenha. Olhei, com má vontade, o ambiente pretensamente luxuoso e sem dúvida decadente. Ocupamos uma mesa de pista, pedimos um espumante e aguardamos o início do espetáculo conversando amenidades.

Aos primeiros acordes do bandoneon, uma luz, vinda não se sabe de onde, refletiu no drapeado das cortinas, conferindo-lhe um tom bordeaux e alargando o espaço, como se as paredes recuassem. A plateia desapareceu, estava sozinho num imenso salão. Sol, emergiu do fundo da pista de dança e caminhou na minha direção, num passo ondulante que alternava uma perna vestida de negro e outra, muito alva, inteiramente desvelada pelo rasgo de sua saia. Ela olhou-me como nenhuma mulher jamais me olhou, nem antes nem depois daquele momento mágico. Um olhar de desejo, de ternura e de entrega. Com um gesto me atraiu para seus braços. Sem qualquer possibilidade de resistir, mergulhei no abismo daquele convite e evoluímos pelo salão numa coreografia rebuscada que nossos corpos conheciam desde a criação do mundo.

Dançamos durante horas, envolvidos pela melodia apaixonante dos violinos e bandoneons. Nossos corpos pulsavam em sintonia com o ritmo passional do tango, numa exaltação de desejo e de prazer. Éramos o único par no salão, os outros casais formavam uma roda, contemplando nossas evoluções. Aos poucos foram aderindo à dança, até que o salão ficou repleto. Sol levou-me para seu camarim, olhou-me no fundo dos olhos e disse com sua voz rouca: − Por que demoraste tanto? Venho aqui todos os dias à tua procura. − Hoje você me encontrou − beijei sua boca rubra, primeiro como quem prova uma fruta exótica, depois com a intensidade de uma paixão avassaladora.

Ficamos dias e noites num idílio sem trégua, a vida suspensa, envoltos na única realidade de um desejo sem medida seguido de um arrebatador prazer que reacendia um desejo maior ainda.

Uma tarde acordei sozinho num aposento vazio. Sol ocultara-se. Chamei por ela, gritei  seu nome, revirei as gavetas. Sentei-me na cama, que conservava as marcas da nossa paixão, ainda aturdido com aquela loucura, quando bateram na porta. − És o Sr. Pedro Faria? − Respondi sim com um gesto. O policial afastou-se deixando Cleonice se aproximar − vista a roupa, querido, vamos para casa.   

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PERSONAS

Quando entrei nesta sala pela primeira vez, estava em pouco intimidado. Quem eu encontraria? Seriam pessoas cultas, já acostumadas a escrever? Seriam jovens talentosos e arrogantes que desdenhariam o engatinhar de um velho nos caminhos da literatura? O despojamento do ambiente me tranquilizou. Fui me sentindo em casa e acolhido pelos futuros colegas, bem semelhantes a mim no desejo e na pouca experiência com as letras. Passados três anos, esta sala é minha casa. Aqui destampo a minha caixa de pandora e liberto meus fantasmas.

Estava começando a apresentar meu novo texto para os colegas e Ricardo, nosso instrutor da oficina de contos, quando elas invadiram a sala:

− Finalmente o encontramos, seu patife, percorremos a cidade inteira à sua procura. − Disse a mais velha, me encarando com fúria.

− O que você está fazendo conosco é imperdoável. − Disse, com mágoa, a mais jovem, uma linda moça de 22 a 25 anos.

Ricardo, com sua calma habitual, se levantou e foi até elas:

− Senhoras, por favor, acalmem-se. Estamos trabalhando. As senhoras não podem entrar aqui deste jeito. Se quiserem conversar com o Afonso, esperem, na sala ao lado, ele terminar de apresentar seu trabalho.

− Mas é exatamente isto que queremos impedir; ele não pode apresentar este monstruoso texto. Se vocês ouvirem o que ele escreveu, tudo estará perdido, o texto já não pertencerá somente a ele. Pertencerá a todos vocês e nosso destino estará selado.

− Não estou entendendo, quem são vocês afinal? − Perguntou Ricardo.

− Eu sou Clotilde e ela é a Mirtes.

Todos olharam para mim. Era a coisa mais louca que jamais me acontecera. A perplexidade me deixou mudo.

− Não seja cínico − disse Clotilde, a mais velha, − você sabe quem somos melhor que nós mesmas.

− Clotilde e Mirtes são as personagens do meu novo conto, este que trouxe para os trabalhos de hoje.

− Isto é uma impostura, vocês leram o conto do Afonso e armaram este teatro − disse Luiz, um dos colegas de oficina − ou foi você que produziu esta farsa, Afonso?

− Não, pessoal, não armei nada. Posso garantir que ninguém leu o texto. Eu passei o dia em casa, escrevendo-o, imprimi e vim direto para cá.

− Estamos diante de um fato inusitado − Ricardo ponderou − vamos admitir, como hipótese de trabalho, que o Afonso seja um Pirandello tupiniquim e que nossas belas amigas, Clotilde e Mirtes, sejam duas personagens à procura de um autor. Por favor, sentem-se e nos contem o que está acontecendo.

− É muito desagradável não ter um passado. De repente sou uma mulher de 45, 46 anos: − Cotilde se dirigiu a Ricardo, − ele poderia ser mais preciso! Nem minha idade ele definiu! Você, como professor, deveria ensinar isto a ele. − Prosseguiu: − Estou grávida, aos 45 ou 46 anos − olhou-me, furiosa,  − tenho um trabalho de parto horroroso: parto normal, de cócoras, pois ele me fez “alternativa”. Fico sabendo que o filho não é meu, alugara minha barriga: a dondoca da Mirtes queria um filho, mas não queria estragar sua carreira de modelo. Aí o desgraçado me dá um furioso instinto maternal. O filho é meu! Ninguém vai tomar o meu filho!

Após um breve silêncio Mirtes interveio:

− Eu entendo a sua dor, Clotilde. Mas eu preciso desesperadamente desse filho. Você é uma mulher realizada, é uma lutadora. Venceu todas as batalhas. Minha vida é um vazio. Quando minha beleza acabar, não restará nada.

− Que batalhas eu venci? Onde você leu isto? − atalhou Clotilde.

− Está nas entrelinhas.

Clotilde bufou furiosa.

− Nem um palavrão eu posso gritar. Ele me fez assim, elegante, superior, abafando em meu peito um turbilhão de emoções. Esta sonsa sabe ler nas entrelinhas, faz de sua fragilidade uma arma para manipular os outros.

Mirtes começou a chorar. Disse, virando-se para mim:

− O que me magoa mais é você me desejar tanto e me amar tão pouco. Fez-me bela e vazia. A ela você deu personalidade, força, coragem. Eu desfilo pelas passarelas esta beleza frívola e passageira que temo perder a cada momento de minha vida.

− Vida? Quem disse que nós temos vida? Somos esboços de personagens de um conto mal escrito por escritor iniciante, de uns setenta a oitenta anos, que vive na periferia do mundo. Seremos conhecidas por uma meia dúzia de leitores da família dele ou de seu círculo de amigos.

Fiquei confuso e triste por causar tanto sofrimento. Recolhi as cópias do famigerado conto que havia distribuído entre os colegas, com a intenção de destruí-las. Ricardo me impediu:

− Não faça isso, Afonso. Você pode não ter um grande conto ainda − enfatizou ainda, − mas tem duas personagens interessantes e − acrescentou sorrindo − bastante vivas. Não as abandone. Hoje vamos ficar por aqui.

Enquanto pegava minha pasta e arrumava meus papeis, Clotilde e Mirtes desapareceram. Deixei os colegas se despedindo de Ricardo e comentando sobre a aula; desci apressadamente temendo defrontar-me com elas na portaria do edifício. Não havia sinal delas. Tomei, aliviado, um taxi de volta para casa, elas estavam sentadas no banco de trás.

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O SALTO

Então DH saltou. A murada, do outro lado, custava a chegar…

***

Saiu cedo de casa. Copa das Confederações. Dia do jogo Brasil X Uruguai. Feriado. Passou no EPA, onde Dalila trabalhava como supervisora.

− Você vai na manifestação, DH?

− Sei não. Detesto aglomeração, me dá pânico.

− É importante, môr! A gente tem que participar, senão as coisas não consertam.

Dalila mudou sua vida. Ele nunca tinha pensado em comunidade, política, manifestação. Só pensava em futebol e zoar com a turma nos fins de semana. Dalila era ligadona nesse negócio de grupo de jovens. Estava juntando dinheiro para ir ao Rio ver o Papa. Ficou com ela uma, duas, três vezes e não desgrudou mais. Namoro firme. Pensando até em casar.

− Vai, môr! De noite a gente se vê. Cuidado, hein! Não entra no meio do bolo.

Pegou o 5523 na direção da Praça Sete. No fundo do ônibus, os pagodeiros do Conjunto Habitacional faziam um som bonito. Encontrou duas enfermeiras do posto de saúde discutindo com uma senhora:

− Se vocês vão trabalhar só 30 horas por semana, a gente não vai ser atendida nunca.

− A Prefeitura tem que contratar mais gente. Você não acha, DH?

Ele sorriu, mas ficou calado, pensando nas 44 horas de labuta pesada que fazia. Passou pela roleta e tropeçou numa caixa de isopor:

− Você não perde tempo, hein Chiquinho?

− A turma vai ficar com sede depois da passeata.

A Praça Sete estava ficando cheia, o seu ônibus foi o último que conseguiu passar, atrás dele uma avalanche de sem-terra, com suas bandeiras e camisetas vermelhas, bloqueou a praça. DH preferiu descer mais à frente, na Av. Amazonas: “Não fica no meio do bolo”, a voz de Dalila repetia na sua cabeça. Mas a Praça Sete parecia um ímã a atraí-lo e ele foi se deixando levar. Parecia uma festa. Gente de todo tipo, de todas as idades, até crianças pequenas. Viu os pagodeiros do Conjunto se unindo a músicos de outro bairro. As enfermeiras lhe deram o braço, uma de cada lado, e o levaram para onde estavam suas colegas.

− Mas eu sou metalúrgico − ele protestou.

− Metalúrgico é enfermeiro de máquina.

Acompanhou-as, em cortejo, até a Rodoviária. Desvencilhou-se delas ao ver o Chiquinho, que lhe vendeu um latão de Skol.

Parou no passeio e ficou vendo a procissão passar: a turma do PCdoB, defensores dos direitos dos animais, o pessoal do PSTU e do PCR, professores e muitos outros. Passou uma turma protestando contra a Copa das Confederações. Ele entrou no bloco e perguntou a um rapaz, que liderava o grupo, por que ele era contra o futebol.

− Não sou contra o futebol, cara, sou contra o governo gastar uma fábula de dinheiro para promover a FIFA e uma corja de jogadores milionários e encher os cofres da Rede Globo. Se você gosta tanto de futebol, por que não está no Mineirão?

DH ficou calado. Voltou para as margens da manifestação. Viu passar cartazes e faixas reclamando da qualidade do ensino, do atendimento na saúde, da corrupção dos políticos. “É muita coisa errada. Será que adianta protestar?” Dalila soprou de novo em seu ouvido: “A gente tem que participar, senão as coisas não consertam.”

Dalila era demais. Como isso foi acontecer com ele: conhecer uma moça como a Dalila, a morena mais linda que existe, com uma cabeça e um coração … Ela não existe…

− E me ama.

− Falando sozinho, cara? Pega aí, me ajuda a carregar esta faixa.

“Queremos saúde e educação qualidade FIFA”

DH concordava com a faixa, entretanto o que mais o revoltava era não poder assistir ao jogo. “Eles expulsaram os pobres do Mineirão, só bacana pode pagar o ingresso.”

Envolveu-se com a onda da passeata. Gritou palavras de ordem, cantou as musiquinhas. Ficou alegre, estava se divertindo. Quando viu, estava no meio do bolo, em cima do viaduto da Abrahão Caram, na pista que leva ao Mineirão e a polícia jogando gás. A multidão o espremendo. Subiu na murada. Do outro lado a pista vazia. O grande vão entre as duas pistas. O pânico.

DH saltou…

 

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AUTO DE NATAL

A VACA, A CABRA E O BURRO

AUTO DE NATAL

Ildeu Geraldo de Araújo

Uma boa forma de comemorar o natal é encenando um AUTO DE NATAL.

Ofereço-lhes, de presente, uma sugestão:

São necessários três “artistas” ou mais, conforme a opção.

PERSONAGENS INTÉRPRETES – Opção 1 INTÉRPRETES – Opção 2
BURRO homem Menino mais crescido
VACA mulher Menina mais crescida
CABRA mulher Menina menor
CORO Os três intérpretes acima Três ou mais crianças

 

Caracterizar os personagens com máscaras ou simplesmente pendurando um cartaz no peito e nas costas de cada um (Ver abaixo uma sugestão de imagens)

Você pode usar a opção “Baixa PDF” ou “Imprimir” existente no site pra ter o texto.

Faz parte do texto, uma estrofe da música “Canto Catalão de Natal” . A sugestão é que após a apresentação se distribua a letra da referida música e que ela seja cantada completa. Apresentamos abaixo a letra completa da música.

Para aprender a melodia ver o seguinte link:

http://www.youtube.com/watch?v=khIFYq4VRms

 

CANTO·CATALÃO DE NATAL

Canção Espanhola

 

 

O inverno sem calor Quando a aurora anunciou Já chegaram os três reis Com contentamento e amor
Já se foi embora O sol que já vinha Com grande alegria Celebrai o dia
Vem a primavera em flor Com amor ela cantou Adorando o rei dos reis Em que o divino senhor
Todo o mundo adora Venha vida minha Numa estrebaria Nasceu com alegria
Quando certo dia então Aceitai meu rei senhor Três presentes pra quem   nasce Como nós não temos ouro
Nascia um lindo botão Esse vinho esse licor Ouro mirra e incenso trazem Ofertamos o tesouro
De uma ro, ro, ro Que a na, na, na Para o pe, pe,   pe Toda a, a, a,
De uma sa, sa, sa Que a tu, tu, tu Para o que, que, que Toda a do, do, do
De uma ro, de   uma sa Que a na, que   a tu Para o pe, para o que Toda a, toda a do
De uma rosa bela Que a natureza Para o pequenino Toda a doçura
Linda feito ela. Fez para vossa alteza Bom Jesus Menino De nossa ternura

 

 

TEXTO

A VACA, A CABRA E O BURRO

 

 

Coro − O curral está parcamente iluminado pela incipiente aurora. A mãe dorme, extenuada, duro labor é parir. O pai sai pela noite. Urge alimentar o fogo: único aconchego que ele pudera prover à mãe e ao Menino. A cabra, curiosa, se aproxima do coxo benquisto, de onde vem o capim de cada dia. Lá dorme o Menino. A vaca e o burro vão chegando, pé ante pé, e contemplam, ele solene, ela ruminando, o filhotinho sobre as palhas.

Cabra − Este filhote não está pronto. Não tem pelo, não anda, não mama, não bale como meus cabritinhos, só sabe dormir o coitadinho. Será que ele escapa?

Vaca – Dormir é bom nestas horas. Nascer é muito cansativo. Daqui a pouco ele acorda e vai berrar como um bezerro. Espero que a mãe tenha boas tetas.

Cabra – A fogueira está se apagando, sem pelo ele morre de frio.

Vaca – Vou aquecê-lo com meu hálito.

Cabra – Cuidado pra não acordá-lo. A mãe precisa repouso. Puxa, que gritaria, nunca vi gritar tanto, uma fêmea ao dar cria.

Vaca – Quem será este filhote?

Burro – É o Filho do Homem.

Cabra – Sei que é um filho de homem. Mas parece diferente.

Burro – E é. Ele é o Filho de Deus.

Vaca – Agora você me confunde – Filho do Homem ou de Deus?

Burro – As duas coisas.

Cabra – O Filho do Deus altíssimo? Que fez o sol e o dia? Que semeou as estrelas no negro véu da noite? Nascer assim, desvalido, filho do bicho homem, numa pobre estrebaria? Não faz sentido! Este Deus é doido!

Burro – Desculpa, Senhor. As cabras não têm papas na língua. Ela não quis te ofender, ela vem lá da caatinga e não sabe distinguir: o que é amor sem medidas, lhe parece desatino.

Vaca – Mas eu entendo, tem tino: um Deus que tem coração, vendo a esmo, sem rumo, sem norte e sem destino, toda sua criação, manda Seu Filho salvar.

Cabra – Mas se o culpado é o homem, de toda nossa aflição, por que Deus nasceu humano? Eu preferia um dragão: as ventas soltando fogo, o rabo varrendo as estrelas. Mantinha o homem cativo da dor, do medo-pavor e lhe dava um corretivo.

Burro – Ah, as cabras, que bicho desmiolado. Se Deus vem amedrontando, onde fica a salvação?

Vaca – Deus quer concórdia, quer paz, quer justiça e união. Por isso vem pequenino, sem poder, sem realeza, em vez de força, seduz.

Burro – É um plano muito sábio, claro, é plano de Deus e vai ser eficaz, mesmo que acabe na cruz… (pausa)

Coro − Os bichos ficam em silêncio. Recolhem seus pensamentos. Onde já se viu cabra inquirir, vaca filosofar e burro profetizar? O dia agora está claro. O sol ilumina a gruta. Vem de longe o alarido de uma grande caravana.

 

A voz dos homens domina.

Todos os intérpretes cantam:

 

“Já chegaram os três reis

Com grande alegria

Adorando o rei dos reis

Numa estrebaria

Três presentes pra quem nasce

Ouro mirra e incenso trazem

Para o pe, pe, pe

Para o que, que, que

Para o pe, para o que

Para o pequenino

Bom Jesus Menino”

(Trecho do Canto Catalão de Natal)

http://www.youtube.com/watch?v=khIFYq4VRms

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Ouvindo Maria

Prólogo:

When the moon is in the Seventh House

And Jupiter aligns with Mars;

Then peace will guide the planets

And love will steer the stars. (Galt MacDermot)

***

Muito prazer. Nylza, Maria Nylza. Você vem sempre à missa do estudante? Estava no Rio, fazendo belas artes, resolvi voltar e fazer arquitetura. Você estuda o quê? Engenharia?

Bem, é que estou interessada em outro rapaz, meu vizinho, ele toca violão.

Você ainda quer me namorar? Meu telefone é 2-4113. Música clássica? Gosto muito, quando é o concerto?

Vamos ao Rio? A gente fica na casa da vovó. Você será bem recebido.

Querido, eu também te amo.

Sim, benzinho, eu me caso com você. Quero muitos filhos.

Ipatinga! Quando você começa? Vou sim, onde você for eu vou também. O importante é você estar bem empregado.

Sim, eu te recebo como meu esposo e te prometo…

Você vai ser pai. Deve nascer em fevereiro. Se for menina vai se chamar Lígia ou Valéria, se for menino será Guilherme ou Henrique.

Estou em dúvida, você poderia comprar um dicionário de nomes próprios. Está bem, busca ela no berçário, quero ver sua carinha. Lígia! Bem vinda, Liginha.

Não é nada não. Eu choro a toa, você já devia ter se acostumado.
Você me deixa tão sozinha para cuidar de tudo. Acha fácil cuidar da casa, da Lígia, fazer compras, dar ordens para a empregada?

Priscila? Alguma namorada antiga, é? Gosto do nome, se for homem vai ser Henrique.

Promovido? Vem cá, meu chefinho!

Ah! Copacabana, eu adoro esta praia. “Existem praias tão lindas, cheias de luz… ” Você está vermelho como um camarão. Deixe eu passar álcool nas suas costas. Não vai arder não, era o que o papai usava para queimadura.

Perdôo.  Sou uma boba, não consigo ficar com raiva de você por muito tempo. Mas nós precisamos conversar.

Benzinho! A Teresa está com febre.

O que você acha de eu terminar meu curso de arquitetura?
A mamãe vem pra Ipatinga tomar conta das crianças e eu fico na casa da sua mãe, a gente troca de mãe.

Foi cansativa sim, mas valeu a pena. Ficar com as meninas paga o cansaço da viagem. Bobinho, ficar com você vale qualquer sacrifício.

Que bom! Finalmente saiu sua transferência pra BH! Sabe como chama este beijo? Juntos para sempre.

É homem, querido, o Henrique finalmente nasceu!

Ir à Europa? Mas o Henrique só tem três meses, ainda está mamando!

Venha cá, me dê o abraço de Paris! Sabe como chama este beijo? Moulin Rouge. A gente se beija e sai rodando.

Ah! Usar a prancheta com este barrigão é difícil, é muito difícil!

Já escolheu o nome? Você é muito atrevido. E se eu não concordar? Ana só? Aninha. Gosto de nomes que ficam bem no diminutivo.

Passei no concurso da prefeitura. Finalmente vou ter o meu dinheiro, sem precisar ficar te pedindo. Eu sei, benzinho, você é um anjo, nunca me negou nada, mas quero ter o meu dinheiro. Se você ficar desempregado posso te sustentar − não é este o seu sonho dourado, ser sustentado pela mulher?

Esta cor ficou boa? Preferia deixar o cabelo ficar branco, mas tenho medo de você me trocar por duas de 20. Sei lá! Tem muita sirigaita solta por aí!

Recebe novamente esta aliança como prova do meu amor e da minha fidelidade. Eu continuo te amando e serei sua para sempre.

O casamento da Teresa vai ser em dezembro. Vou ter que comprar roupa de inverno. O que eu faço com meu medo de avião!?

Aposentada, nem acredito! Agora vou ter tempo para arrumar esta casa.

Sabe como chama este beijo? Miudinho.

Seja corajoso, vai dar tudo certo. Faço curativo no seu olho, eu cuido de você.

Canto sim! Você não me escuta, não presta atenção em mim.

Querido, você já me perdoou?

Ei, vovô, vem ver a Júlia, sua neta já saiu da sala de parto.

Estou bonita? Afinal é o casamento do meu filho.

Estou preocupada com a festa. Convidar só 150 pessoas? Vai ficar muita gente de fora. Afinal não é todo dia que a gente faz 70 anos!

Quando você vai se aposentar? Se você me amasse, como vive repetindo, você ia querer ficar comigo o tempo todo.

A Cecília é linda, é ruivinha.

Ortogonal? Que nome para um beijo! Coisa de engenheiro. Mas é gostoso!

Daniel, o filho do seu filho. Olha, vovô, como ele é lindo!

Bodas de ouro. Acho que estou ficando velha. Cinco filhos, três netos… Linda? São seus olhos.

Ah é! Quer dizer que agora vão começar os anos dourados? Promessa é dívida!

Benzinho, eu sou tão feliz…

Epílogo:

“Quem um dia irá dizer

Que existe razão

Nas coisas feitas pelo coração?

E quem irá dizer

Que não existe razão?” (Renato Russo)

 

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Conto de Natal

− Alô.

− Amaral, que brincadeira é esta. Você enlouqueceu de vez?

Depois da separação, Mariana nunca mais chamou o marido de Nini, Nininho, Valdo ou Dico. Passou a chamá-lo pelo sobrenome, com faziam os colegas de trabalho.

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O Coração de Tavinho

Assim que o Dr. Gilson mencionou doação de órgãos, uma dor aguda atingiu a alma de Marcos. Fi-cou calado, cabisbaixo, os braços cruzados apertando o peito. O médico tocou seu ombro e o deixou sozi-nho. Marcos desabou, chorou silenciosamente todas as lágrimas que havia reprimido.

Tavinho era a alegria dos pais. Aos 26 anos estava fazendo residência no Hospital das Clinicas, de-pois de um brilhante curso de graduação. Os amigos e amigas tinham nele seu centro de convergência. Marcos e Maria Helena recebiam a turma em sua casa como filhos. De repente ele estava no UTI, em coma, atingido por um AVC gravíssimo.

Marcos sabia que a situação do filho era muito grave. Dr. Gilson o preveniu, desde o início, sobre as poucas possibilidades de uma recuperação plena. Mas ele acreditou firmemente num milagre e sua fé deu forças a Maria Helena, evitando que ela caísse no abismo do desespero. Por dez dias a vida ficou suspensa, dependurada nas oscilações de cardiógrafos, no bip bip dos indicadores de pulso. Os boletins médicos eram ouvidos com a respiração interrompida e o coração disparado. Depois veio a estabilidade. A situação não piorava, mas também não havia nenhuma melhora.

Após a conversa com Dr. Gilson, Marcos foi para a visita diária â UTI. Aquele era para ele um mo-mento de angústia. Ver seu filho inerte, entubado, ligado por fios a um monte de aparelhos, lhe dava uma tristeza sem tamanho. Maria Helena já estava lá. Conversava animadamente com o filho, como se ele pu-desse dialogar com ela: – Aline ligou outra vez. Mandou um beijo… Ela é mesmo uma gracinha. Já a Michelle é uma interesseira… Só amizade? Ela está doida pra casar… Não caia nesta, Tavinho. Você tem que terminar a residência e depois aproveitar um pouco a vida. Viajar…

Contemplando o desvelo de Maria Helena, Marcos sentiu muita pena pois Tavinho não estava mais ali. Como dizer isto a ela?

Após saírem do UTI, Marcos colocou o braço sobre os ombros dela e foram para o jardim ao lado do hospital. Sentaram-se perto de um pé de manacá todo florido.

− Tavinho adora este perfume, diz que é o cheiro da casa da Vovó − comentou ela − Ele adora a na-tureza: as flores, as plantas, os passarinhos, a vida.

− Maria Helena, o Tavinho está morto.

− Meu Deus, não! Ele está vivo! Acabamos de vê-lo, está respirando, seu rosto está quentinho. − É artificial, Maria Helena. Seu cérebro parou. Tavinho morreu. − Não repita isto! Não repita isto! − Ele apertou-a contra si. Ela caiu num choro desesperado. Ficaram ali, abraçados, compartilhando uma dor que nenhum pai, nenhuma mãe quer sentir.

Voltaram para o hospital em silêncio. Maria Helena queria ouvir do Dr. Gilson o veredito fatal.

− Como o senhor pode ter certeza que o Tavinho…

− A atividade cerebral cessou completamente, há ausência dos reflexos do tronco cerebral.

− Mas… a atividade… cerebral…?

− Não retornará. Há ausência de perfusão sanguínea e de atividade metabólica cerebrais.

Maria Helena ainda sustentou por alguns segundos o olhar do médico, depois seus olhos foram se enchendo de lágrimas.

− Quando… vocês… vão desligá-lo?

Dr. Gilson abandonou o tom profissional: − Cada coisa no seu tempo; conversem entre vocês; faremos o que decidirem.

Foram para a capela que estava vazia. Maria Helena chorou convulsivamente por muito tempo. Marcos olhava para ela com ternura. Quando sua esposa se aquietou, segurou suas mãos e disse: − Acho que o Tavinho gostaria que seus órgãos fossem doados. − Maria Helena olhou para o marido com os olhos inflamados: − Retalhar o meu filho? Você quer despedaçar nosso filho e distribuir? Como você pode me dizer uma coisa destas? − Nosso filho está morto, meu bem, ele nunca negou ajuda a quem precisasse. “Ser médico é salvar vidas”. Lembra do seu discurso de formatura? − Maria Helena não respondeu. Ficaram um longo tempo em silêncio.

− Meu bem, vamos para casa? Eu preparo alguma coisa para comermos. − Ela não respondeu. − Precisamos sair deste hospital um pouco, Maria Helena. − Não, não. Vá você.

Em casa, Marcos se livrou dos sapatos incômodos, preparou um spaghetti ao alho e óleo e o sabo-reou com se fosse uma iguaria, moeu e preparou um café sentindo seu sabor e seu cheiro reconfortantes.

De volta ao hospital viu, pela porta da capela, Maria Helena conversando com uma senhora. Quan-do esta se retirou sentou-se ao lado da esposa.

− O filho daquela senhora está internado aqui, esperando um coração. É o primeiro da fila de transplante, mas seu estado é desesperador. − Maria Helena apertou com as duas mãos a mão de Marcos − Você tem razão, querido, o Tavinho doaria até seu coração.

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