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Folhetins

bem querer – capítulo IX

 − Oscar, Oscar, por onde você andou, meu querido?

− Pelo vale das sombras, mas fui resgatado por uma deusa ruiva, de seios firmes e redondos, longas e elásticas pernas, braços ternos e acolhedores e um sorriso milagroso que afasta todo mal.

− Parabéns pra você, nesta data querida. Muitas felicidades, muitos anos de vida. Viva o Oscar!

− Obrigado, meu bem. Não sei por que celebrar meu aniversário, se a cada ano estou mais decadente.

− Que isso, querido, você está ótimo. Os cabelos brancos lhe dão um charme irresistível.

− Estou velho, careca e decepcionado com o povo brasileiro. Preferir o Fernando Henrique no lugar do Lula!

− O FHC é de esquerda também, foi contra a ditadura. Foi exilado.

− Que exilado! Ficou passeando em Paris, lecionando na Sorbonne, − disse Oscar, com desdém. − A eleição do Lula seria o coroamento de todos esses anos de luta, sacrifício, sofrimento.

− Você está desistindo? Que é do Dom Quixote que queria conquistar o mundo?

− Levou muita porretada das pás dos moinhos de vento.

− Eu era da UDN, você me converteu, hoje sou do PT e não vou desistir − disse Marlene, com entusiasmo. − Lula vai ganhar em 1998, você vai ver.

− Uma empresária no Partido dos trabalhadores! Só mesmo o Lula para conseguir essa façanha.

− Só mesmo você, meu amor, com sua generosidade, sua integridade, sua coragem, poderia abrir meus olhos para enxergar além dos meus interesses.

Oscar fitou sua mulher com imenso afeto. A emoção roubou suas palavras.

− Chega de política, hoje quero você alegre, animado! A partir de hoje você é sexy.

− Sexagenário. Em alguns momentos de minha vida duvidei que chegasse aos sessenta anos.

−Você vai adorar o presente que vou lhe dar − disse Marlene, num largo sorriso.

− Se é o que eu estou pensando, este jantar é uma perda de tempo. − Oscar ameaçou se levantar.

− Não seja apressado, curta seu canard a l’orange, e seu Veuve Clicquot. Escute, o piano está tocando “Fascinação”! Saboreie este prelúdio. Afinal, estamos no Copacabana Palace.

− Você me arrastou para este antro da burguesia. Aliás, você está em casa. “Empresária destaque do setor supermercadista” − retrucou Oscar, provocador.

− Mas a comida está saborosa e o champanhe é um sonho, confesse! Vamos desfrutar do que construímos, nós merecemos. “Pobres, sempre os tereis convosco.”

− Cuidado, Marlene, ao usar as palavras de Jesus fora do contexto.

− Não seja tão sério, meu amor. Relaxe, brinque um pouco. Acho que vou pedir outro Veuve Clicquot para deixar você no ponto.

− Negativo, quero estar em condições de “saborear” o meu presente.

Marlene dispensou a sobremesa. Mesmo naquela noite especial, ela não descuidava da silhueta. Então os dois deram-se os braços e subiram para o quarto.

FIM

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bem querer – capítulo VIII

 

Partia o coração de Oscar lembrar-se dos sofrimentos de Marlene.

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Marlene, desde a partida do marido para se esconder na fazenda do tio Juquita, estava desassossegada. A combinação era que ele telefonaria quando chegasse a Corinto.

− Fique calma, com essa confusão as ligações telefônicas não devem funcionar direito − dona Zezé tentava consolar a filha.

− Ele foi preso, mamãe, alguma coisa me diz que apanharam o Oscar antes de ele embarcar ou na estrada.

− Ele vai dar notícia, vamos esperar.

Oscar não apareceu na fazenda. Uma semana depois do combinado, tio Juquita foi a Corinto e telefonou para seu irmão. Seu Manoel, com a ajuda de seus amigos do Rotary Club, conseguiu a informação de que seu genro estava preso nas dependências do Departamento de Ordem Pública e Social. Tentou por todos os meios uma autorização para visitá-lo, mas foi impossível. Um amigo, com contatos no DOPS, garantiu que ele estava bem, mas não podia receber visita. Somente depois de obter essas informações é que seu Manoel deu a notícia à mulher e à filha.

− Pelo menos ele está vivo e sabemos onde está.

− Ele está sendo torturado, mamãe. Vou lá ao DOPS, tenho de vê-lo. Faço um escândalo se me impedirem.

− Aí você vai presa também.

− Eu prefiro estar com ele na cadeia do que aqui fora, sabendo que eles o estão maltratando.

Seu Manoel ponderou que qualquer atitude intempestiva poderia prejudicar a situação de Oscar.

− Vamos rezar minha filha, Deus vai proteger seu marido.

Foram à igreja de São Judas Tadeu onde Marlene fez a promessa de ajudar na construção do santuário, acendeu uma vela, rezou e voltou mais aliviada para casa.

Foi um tempo de aflição e sofrimento. Marlene pensava no marido o dia todo. Acordava esperando que ele lhe levasse um cafezinho na cama, como fazia todos os dias. A ausência do aroma lhe lembrava que ele devia estar numa cela fria, talvez ferido, sozinho e abandonado. Chorava desconsolada, verificava se a vela diante da imagem de São Judas continuava acesa e rezava até se sentir consolada.

Foi várias vezes ao DOPS, mas era impedida de chegar à portaria por policiais grosseiros. Um dia foi abordada por um policial, surpreendentemente cortês, que lhe perguntou o motivo de sua presença naquele local.

− Meu esposo está preso aqui. Oscar Pereira Lino. Preciso ter notícias dele.

− Ah, o Oscar do Sindieletro! Qual é sua graça, minha senhora?

− Marlene Silveira Lino. O senhor conhece o Oscar? Ele está bem?

− Hoje cedo ele estava muito bem disposto, dona Marlene.

O coração de Marlene disparou.

− Posso vê-lo?

− Infelizmente ele está incomunicável, mas eu posso levar um bilhete da senhora para ele.

Marlene tirou da bolsa um envelope e passou para o detetive.

− Me procure na Gruta Metrópole, às sete da noite, talvez eu consiga trazer uma resposta para a senhora.

− Eu estarei lá. Um bom dia para o senhor.

− Não quer saber o meu nome?

− Quero, qual é?

− Detetive Barbosa, seu criado, mas pode me chamar de Barbosinha.

− Até logo, seu Barbosa.

− Uma questão de segurança, não conte nada a ninguém. Estou me arriscando muito.

Marlene chegou à casa dos seus pais e dona Zezé notou que havia alguma coisa no ar.

− O que está acontecendo, minha filha?

− Nada, mamãe. Estive no DOPS, mas não consegui nem pisar no passeio, está tudo interditado.

− Você está diferente, me conta, teve alguma notícia?

− Não, mamãe, é cisma da senhora. Estou com fome. Tem almoço?

− Que novidade, tem quinze dias que é uma luta fazer você comer alguma coisa.

Após o almoço, dona Zezé viu a filha olhando o catálogo telefônico, anotando alguma coisa no bloco de recados e colocando na bolsa. Depois, ela foi para sua casa, dizendo que ia dormir um pouco.

Dona Zezé examinou o bloco e conseguiu ver a marca da anotação da filha: “Gruta Metrópole, Rua da Bahia, 1052”.

Marlene passou a tarde tentando resolver um dilema angustiante: ir ou não ir ao encontro com o detetive. Não lhe passara despercebido seu olhar guloso a lhe percorrer o corpo da cabeça aos pés. Mas era a primeira oportunidade de receber alguma notícia concreta de Oscar. Rezou para Nossa Senhora das Graças, que ela tantas vezes coroara, na matriz da sua paróquia. Às dezoito horas, colocou um vestido bonito, mas discreto, e seguiu para o encontro.

Sua entrada no restaurante provocou um frisson. Sua beleza ruiva sempre despertara a admiração das pessoas. Avistou o detetive Barbosa numa mesa próxima da entrada, olhou discretamente em sua direção e continuou em frente, ocupando uma mesa mais ao fundo. Barbosinha estava jantando com alguns colegas. Eles olhavam para a mesa de Marlene e riam ruidosamente.

Marlene estava com as faces rubras de constrangimento. Seu desejo era sair correndo daquele lugar. Sentiu em seu ombro um toque familiar.

− Papai, o que o senhor está fazendo aqui?

− Eu que lhe pergunto, minha filha.

Marlene olhou instintivamente para a mesa onde estava o detetive.

− Quem são aqueles homens, Marlene?

− É o detetive Barbosa que prometeu me trazer notícias do Oscar.

− Oscar foi transferido para uma prisão do exército em Juiz de Fora, há três dias.

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Marlene sempre teve fé em si mesma e em Deus.

(Continua no próximo capítulo)

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bem querer – capítulo VII

 

Oscar deixou Marlene dominar seu devaneio. A energia dela curou suas feridas.

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Marlene reinou no baile de formatura da turma de administradores de 1968. A Orquestra tocou “Fascinação”. Ela caminhou na direção de Oscar que havia permanecido sentado ao lado dos sogros desde o início da festa. Os casais se afastaram, deixando o salão só para eles. Oscar relutou em se levantar, alquebrado por quatro anos de prisão; somente comparecera ao baile por que Marlene se negou a ir sem ele. Ela permaneceu diante dele, com os braços estendidos num convite. Por fim ele se levantou, sob os aplausos dos presentes e tomou-a nos braços.

− Eu te adoro, minha querida.

− Só se adora a Deus.

− Você é minha deusa de cabelos de fogo.

− Você me conquistou quando me ofereceu essa música na barraquinha.

− Continuo fascinado por você até hoje.

***

Oscar ficara na prisão, quatro anos, sem que fosse processado formalmente. Com a promulgação da constituição de 1967, o regime resolveu regularizar a situação dos presos políticos. Oscar foi julgado, e, como não houvesse nenhuma prova contra ele, foi absolvido. Sua libertação, entretanto, só aconteceu em agosto de 1968. Nunca contou nada do que havia sofrido na prisão, mas as marcas eram visíveis. Havia perdido o entusiasmo, o fogo que alimentava sua vida.

Após a promulgação do AI-5, foi detido para interrogatório e libertado em seguida, por não verem nele qualquer perigo.

Marlene, ao contrário, era uma fonte de energia. Havia sido brilhante em seu curso. Dez anos mais velha que seus colegas, liderou a turma da primeira aula até a formatura. Foi uma esposa de preso político combativa e dedicada, lutou o tempo todo para que ele tivesse um tratamento pelo menos humano. Deu-lhe toda a assistência que as circunstâncias permitiram. Ao ser libertado, Oscar teve sua dedicação em tempo integral. Foram dois anos de cuidados constantes. Ela tentava, com seu carinho, tirá-lo da letargia que tomara conta dele.

Quando Oscar começou a reagir, os dois foram trabalhar na empresa de seu Manoel, que agora contava com duas filiais, uma no Barreiro e outra em Santa Efigênia. Oscar cuidava da manutenção das instalações e Marlene assumiu a coordenação do abastecimento. Em pouco tempo, seu espírito empreendedor eclodiu, e o pai, maravilhado com seu talento, foi transferindo para ela a direção da empresa.

Estudando o desenvolvimento das redes de supermercados Serv-Bem, Pag-Pouco e Merci, que surgiram em Belo Horizonte a partir de 1958, ela criou a rede “Supermercados do Mané”, uma brincadeira-homenagem a seu pai. Seu Manoel lhe entregou a direção de todos os seus negócios e foi para a Europa realizar um antigo sonho de dona Zezé.

Os empreendimentos de Marlene prosperaram nos anos do milagre econômico, mas o que a fazia feliz era o amor entre ela e Oscar, que aumentava, milagrosamente, com o tempo.

− Você demorou, minha rainha.

− Uma reunião que não acabava, até que eu pus todo mundo pra fora e vim correndo ver o meu bem − Marlene se jogou nos braços de Oscar e o beijou com paixão.

− Casei-me com uma feiticeira. Lá fora ela é “a empresária”, passa aquela porta e se transforma na minha namorada.

− Sua namorada está precisando de um banho, de ficar linda de morrer, porque hoje é dia de comemoração.

− Esqueci alguma coisa? Seu aniversário foi no mês passado, o aniversário do nosso casamento é daqui a três meses.

− Está faltando a data mais importante da minha vida. O que aconteceu três meses antes do nosso casamento?

− Não me lembro.

− Você me seduziu, Dom Juan.

− Nada disso, você me seduziu.

− Eu disse: Não, Oscar! Não, Oscar!

− Mas não retirou minha mão do seu seio. Não parou de me beijar e cravou as unhas nas minhas costas.

− E rasguei sua camisa novinha. Você é um mentiroso, Oscar. Nunca vi essa camisa rasgada.

− Tive que jogar fora, ela ficou imprestável.

− Aonde você vai me levar esta noite?

− Você é quem manda, Marlene.

− Nunca fui a um motel.

***

No dia dez de fevereiro de 1980 foi fundado o Partido dos Trabalhadores, aproveitando a abertura política de 1979. O PT representou, para muitas pessoas que desejavam um país mais justo e mais humano, uma esperança concreta. Nascido das bases, alimentado pela luta contra a ditadura, foi gerado no seio do povo. Oscar filiou-se ao PT e participou de suas atividades desde que foi reconhecido como partido político, em fevereiro de 1982.

Marlene ficou apreensiva. O presidente da república ainda era um general e muitos duvidavam da “abertura lenta, gradual e segura” promovida pelos militares. Entretanto, ao ver de novo o brilho nos olhos de Oscar, ela se alegrou. O caminho foi longo: luta pelas diretas já, a eleição e morte de Tancredo Neves, o governo de Sarney (um trânsfuga da ditadura) e finalmente a eleição direta de 1989 com Luiz Inácio Lula da Silva, a grande estrela do PT, como candidato.

Oscar se empenhou na campanha com todo seu coração. Ainda tinha prestígio entre os eletricitários, visitou cada unidade da CEMIG. Participou de comícios, corpo a corpo nas ruas, vendeu botons e bandeirinhas.

Marlene ajudou no financiamento da campanha e, unida à Associação dos Dirigentes Cristãos, participou ativamente da campanha. Ainda não foi dessa vez. Collor venceu as eleições no segundo turno.

− Esse filhote da ditadura não devia governar. Não tem estofo, não tem apoio, é uma farsa.

− Mas ele ganhou a eleição, Oscar.

− A rede Globo torceu o debate. A história do aborto foi um golpe sujo.

− Daqui a cinco anos nós vamos à forra, meu bem.

Em vinte e nove de setembro de 1992 é votado o impeachment de Collor.

Marlene foi escolhida a “empresária destaque do setor supermercadista de 1994”.

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Marlene era uma ganhadora, enquanto ele estava destinado a ter seus sonhos impedidos pelo desenrolar da história. Mas ela também tivera seus maus momentos, por compartilhar sua vida com ele.

(Continua no próximo capítulo)

 

 

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bem querer – capítulo VI

 

O devaneio levou Oscar para um tempo de muita esperança, muita luta e que resultou em muito sofrimento.

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− Desse jeito vai ser difícil eu engravidar, só se for por obra do Espírito Santo. Você ficou dez dias no Rio, Oscar, sem mandar ao menos um telegrama!

− Venha cá, meu bem, vamos tirar o atraso.

− Ah, não! Primeiro você vai tomar um banho e comer alguma coisa.

− Então vem comigo, preciso lhe contar. O comício foi lindo, tinha umas duzentas mil pessoas. O discurso do Brizola foi arrasador. Ver o Prestes sendo ovacionado, foi demais; eu chorei feito uma criança.

Oscar saiu do chuveiro, envolveu a mulher com seus braços e beijou seus lábios com paixão.

− Agora eu vou ter que tomar banho, você me molhou toda.

− O Arraes falou bem como nunca. Sou fã do Arraes, ele é mais pé-no-chão que o Brizola, mais autêntico. Agora, o discurso do Jango foi uma apoteose. Quando ele anunciou a desapropriação das terras ao lado das ferrovias e rodovias, o mundo veio abaixo. As reformas estavam acontecendo! Anote essa data, Marlene: 13 de março de 1964. Eu vi a História sendo escrita!

− Está bem, meu Che Guevara − disse Marlene se enxugando, − vou preparar um mexido para você.

Quando a comida ficou pronta, Marlene chamou pelo marido. Ele não respondeu. Encontrou-o no quarto, ferrado no sono. Ela ficou olhando seu homem com um misto de ternura e decepção, levantou os olhos e viu, no espelho do guarda-roupa, uma mulher no esplendor de seus trinta anos. Passou a mão pelo seu ventre: reto, liso, ocioso, estéril.

Oscar acordou tarde. Marlene estava lendo o jornal.

− Estou com medo, Oscar.

− Medo de que, meu anjo?

− Vai haver reação. Eles não vão perder seus privilégios e ficar quietos.

− O que eles podem fazer? É a força do povo! A força avassaladora da História!

− A TFP já marcou uma passeata em São Paulo para amanhã.

− Esses almofadinhas não têm colhões para enfrentar o proletariado.

− Pode haver uma guerra civil. E você, como diretor de sindicato, vai estar envolvido.

− Eles vão afinar. O esquema militar do governo está bem articulado. Ninguém vai enfrentar o exército. A reforma agrária é um decreto do Presidente. E, para dizer a verdade, é tímida, são somente as terras perto das ferrovias e das rodovias federais.

Marlene entregou o jornal ao marido e foi cuidar do almoço. Oscar leu as notícias do Comício da Central do Brasil.

− O almoço está pronto, Oscar.

Oscar entrou na cozinha sorrindo. Abraçou a mulher por trás e ficou olhando as panelas fumegantes por cima dos seus ombros.

− Você me saiu uma boa cozinheira.

− Mulher de proleta tem que se virar.

− Deixe-me ver estas mãozinhas. Que horror, suas unhas estão um lixo − disse com voz afetada, − que mãos lindas, fortes, mãos de quem trabalha, mãos de uma dona de casa.

− Gostaria que fossem as mãos de uma mãe de família.

Sentaram-se à mesa e começaram a almoçar.

− Podemos adotar uma criança.

− Você também já desistiu? − Marlene olhou Oscar nos olhos.

− Então você desistiu?

− Foi castigo, Oscar. Ninguém foge da justiça de Deus.

− Justiça de Deus! Castigo! O que é isso, Marlene?

− Nós não devíamos ter feito aquilo. Podíamos ter esperado o casamento.

− Ora, Marlene, nós só nos casamos porque você cismou que estava grávida.

− Então você só se casou comigo porque eu fingi que estava grávida? − disse Marlene magoada.

− Eu não quis dizer isso, meu bem. Casei-me com você porque te amo. Mas nós poderíamos ter esperado eu me formar e a nossa vida seria bem diferente.

− Você me seduziu, Oscar, esqueceu? Eu pedi para você parar.

− É, me pediu para parar com a voz sumida, os olhos revirados, a língua enrolada com a minha e as unhas cravadas em minhas costas. Até rasgou minha camisa. E era uma camisa novinha.

− Minha língua não estava enrolada com a sua, estava quietinha! − Marlene começou a rir. − Você é impossível.

A sesta foi deliciosa.

Os acontecimentos se precipitaram. “Eles” reagiram, conforme Marlene havia previsto. Forças políticas e econômicas; ameaça de intervenção americana; o medo do comunismo. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu quinhentas mil pessoas em São Paulo. Em 31 de março de 1964, tropas do exército saíram de Minas, com o apoio da polícia de Magalhães Pinto.

No dia seguinte, Oscar chegou em casa à noitinha; estava exausto, mas ainda com esperança.

− Ô, Oscar, você me mata de aflição. Você sumiu. Dois dias sem dar notícias.

− Desculpe, meu bem. Não deu. Foi uma loucura de reuniões e reuniões.

− Pra que, Oscar? Não vai adiantar nada. Você tem é que ficar quieto, se esconder.

− Vai ter resistência, Marlene. Não podemos entregar os pontos assim, sem fazer nada. O Jango foi para o Rio Grande, tem o apoio do terceiro exército.

Dois de abril de 1964: Ranieri Mazilli assume a Presidência interinamente e João Goulart se exila no Uruguai.

No dia três, Oscar não se levantou da cama. Preocupada, Marlene foi acordá-lo.

− Você está sentindo alguma coisa, meu bem?

− Estou com uma vontade enorme de morrer, Marlene, de sumir no mundo. Se não fosse você, não sei o que faria.

Marlene passou a mão nos cabelos dele e beijou carinhosamente sua testa.

− Estou preocupada com você. Papai disse para você passar uns tempos na fazenda do tio Juquita, lá em Corinto.

− Você vai comigo?

− Não, Oscar, estou pensando em entrar para o cursinho. Quero fazer vestibular no final do ano, já que não posso ter filhos. Você concorda?

− Você não precisa de minha autorização.

Oscar foi preso na Estação Rodoviária, quando tentava embarcar para Corinto.

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Oscar preferia pular as páginas da memória que viriam. Vendo Marlene através da taça, sua figura cresceu em sua lembrança e em seu coração.

(Continua no próximo capítulo)

 

 

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bem querer – capítulo V

 

Oscar sorriu, em seu devaneio. Marlene estava mesmo ansiosa por um filho.

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Passaram-se muitas luas. Os exames eram cada vez mais especializados, realizados em Belo Horizonte e depois em São Paulo. Oscar também se submeteu aos exames, mas com ele os resultados eram normais. Marlene recusava obstinadamente o diagnóstico de esterilidade.

Oscar precisou de seu certificado de reservista para apresentar na Cemig. Revirou suas gavetas sem êxito. Resolveu olhar numa das gavetas reservadas à Marlene. A gaveta estava cheia de saquinhos de pano com uma rosa vermelha seca dentro. Quando Marlene voltou de sua visita diária à sua mãe, ele perguntou:

− Para que são as rosas secas que estão na gaveta de sua penteadeira?

− O que você foi xeretar na minha penteadeira?

− Não acho meu certificado de reservista, tenho que apresentá-lo amanhã no serviço.

− Vou pegar para você. Está numa das caixas que veio da casa de seus pais e que você não arrumou até hoje.

A história das rosas vermelhas ficou sem explicação.

Dona Zezé foi com seu Manoel assistir a inauguração de Brasília e voltou de lá empolgada com a nova capital.

− Brasília sim, é uma cidade maravilhosa. O JK cumpriu sua promessa: cinquenta anos em cinco.

− Mas a inflação está a vinte e cinco por cento. Adivinha quem vai pagar a conta: os empresários.

− Acho que é o povo, seu Manoel. No final das contas, é sempre o povo quem paga − retrucou Oscar.

− Vamos parar com política. Trouxe para vocês as imagens de São Cosme e São Damião, um par de sapatinhos e uma vela dourada.

− Que sapatinhos lindos, mamãe.

− Está acontecendo alguma coisa que não estou sabendo? Vou ser pai, Marlene?

− Se vocês fizerem a simpatia direitinho, você será pai em breve − respondeu dona Zezé no lugar da filha, − tem que ser na lua cheia.

Na primeira noite de lua cheia, Marlene e Oscar se ajoelharam diante das imagens e da vela dourada, devidamente acesa, rezaram três ave-marias, deitaram-se e se amaram até a vela se consumir.

Com a lua nova veio a frustrante menstruação.

Oscar foi indicado pelos colegas para a CIPA – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes. Começaram suas divergências com a chefia da Empresa. Ele exigia providências para a prevenção de acidentes. A chefia sempre atribuía os acidentes a atos inseguros dos trabalhadores. A CIPA, que sempre fora um órgão sem atuação, que existia apenas para cumprir a lei, passou a analisar cada acidente e a apontar as responsabilidades da Empresa.

Oscar passou a ser hostilizado pela chefia. Não podia ser demitido, devido à imunidade legal, que protegia os cipistas, mas foi sendo preterido nos treinamentos e nas promoções, apesar de ser considerado um dos melhores técnicos.

O assunto apareceu num dos almoços dominicais na casa dos pais de Marlene e, pela primeira vez, houve uma discussão entre o genro e o sogro. Quando se despediram, seu Manoel disse, em tom conciliador:

− Desculpe-me por meter a colher na sua vida; não gosto de vê-lo prejudicado em sua carreira por causa do seu idealismo.

− Eu é que tenho que me desculpar, seu Manoel, se fui indelicado com o senhor. É que todo mundo fica me dizendo que eu vou me prejudicar, mas eu tenho responsabilidades. É a segurança dos colegas que está em jogo.

Marlene não disse nada no retorno para casa. Ficava preocupada, mas admirava a integridade do marido e o apoiava. O silêncio de Oscar denunciava um conflito interno. Ele não queria se prejudicar e, principalmente não queria prejudicar Marlene, mas começava a ter consciência da oposição de interesses entre os trabalhadores e os patrões, daquilo que o pessoal do sindicato chamava de luta de classes.

− Me convidaram para participar da chapa do sindicato.

− Você aceitou?

− Não ia aceitar sem falar com você, Marlene!

− Você quer ser sindicalista?

− Não sei, Marlene, nunca me meti em política, mas tenho visto tanta coisa errada. Apesar da CEMIG ser uma empresa estatal, a mentalidade da direção é patronal. Na época dos acordos salariais eles jogam pesado. Imagina o que acontece nas empresas privadas, que são dirigidas pensando apenas no lucro? Temos que trabalhar muito para tomar o Sindieletro das mãos dos pelegos, que são sustentados pela direção da Companhia. Aí poderemos endurecer o jogo e conquistar mais vantagens para os trabalhadores.

− Eu te apoio, meu querido, qualquer que seja sua decisão.

− Este é o amor da minha vida!

Por insistência de Marlene, foram ao cinema, ver “Gigi”, que havia ganhado o “Oscar” em 1958 e que somente agora era exibido em Belo Horizonte. Vendo a expressão sonhadora no rosto da esposa, Oscar alfinetou.

− Eu não me daria a essa Gigi!

− Mas ela ganhou o “Oscar” e com muito mérito − retrucou Marlene.

− Dos indicados, eu acho “Acorrentados” muito melhor; um drama humano e não dessa historinha de mocinhas românticas.

− Sou mocinha romântica e ganho meu Oscar todos os dias − disse Marlene agarrando o braço do marido e pousando a cabeça em seu ombro.

Naquele ano de 1960, Jânio Quadros foi eleito presidente da república, prometendo varrer todos os problemas do Brasil.

Dona Zezé presenteou a filha com uma enorme reprodução da tela “Anunciação a Maria”, de Leonardo da Vinci.

− Sua madrinha trouxe de Roma. O quadro foi benzido pelo papa João XXIII. Coloque acima da cabeceira de sua cama. Toda noite, antes de deitar, você e o Oscar devem rezar o terço ou, pelo menos uma dezena.

− Toda noite, mamãe?

− Pelo menos naquelas em que vocês estiverem mais entusiasmados.

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A vida é mesmo estranha”, pensou Oscar, ele e Marlene tiveram suas vidas alteradas por causa de uma falsa gravidez, agora desejavam ardentemente um filho que não conseguiam gerar. A UDN lutou anos para eleger um presidente da república, agora embarcava na aventura de apoiar Jânio Quadros. “Em que isso vai dar?”

(Continua no próximo capítulo.)

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bem querer – capítulo IV

 

No retorno da lua de mel as coisas não estavam tão doces entre o casal.

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Em Belo Horizonte, dona Zezé assumiu os cuidados da filha, enquanto Oscar, colocado de lado, resolveu procurar um barracão para alugar. Não queria ficar morando na casa dos sogros.

Pelo diagnóstico do ginecologista de dona Zezé, Marlene teria tido uma gravidez psicológica. Oscar ficou em silêncio quando ouviu as notícias. Uma sombra nublou seu rosto. Quando os dois ficaram a sós, Marlene o interpelou:

− O que foi? Por que essa cara? Está pensando que eu inventei a gravidez?

− Não, Marlene, mas esse negócio de gravidez psicológica, existe isso? Por que você não fez o tal exame?

− Para que exame! Eu tinha certeza que estava grávida! A falta de menstruação, os seios duros, a barriga crescida, até leite eu tive.

− A gente não precisava ter casado nessa correria toda. Você devia ter se informado melhor.

− E você? Por que não se informou? Não fiquei grávida sozinha!

− É bobagem ficar discutindo isso agora. Você está bem? Sua saúde está boa?

− A saúde está boa, a reputação é que parece estar um pouco arranhada.

− Meu bem, me desculpe, sei que você não teve culpa, não estou lhe acusando.

Oscar tentou abraçar a esposa, que se desviou dele e saiu enxugando os olhos, à procura da mãe.

À noite, Oscar levou Marlene ao cinema. Foram ver “Depois do Vendaval”, com John Wayne e Maureen O-Hara. A comédia, dirigida por John Ford, restabeleceu entre os dois o clima de ternura. Quando chegaram na casa dos pais de Marlene, onde ainda estavam hospedados, Oscar tomou Marlene nos braços:

− Venha cá, minha Mary Kate.

− Você vai acordar meus pais, seu John Wayne de meia tigela!

Oscar empurrou a porta do quarto com o pé e jogou a mulher sobre a cama, que, ao contrário do filme, resistiu ao impacto do corpo delicado de Marlene. Dona Zezé veio ver o que estava acontecendo, do corredor compreendeu que estava tudo bem.

No dia seguinte, mudaram-se para a casinha deles, montada com os presentes de casamento. Compraram os móveis à prestação. O enxoval da noiva era  suficiente para suprir as necessidades dos próximos dez anos.

Oscar passou seis meses em treinamento e adaptação ao emprego. Destacou-se de imediato e assumiu a liderança de uma turma de eletricista de campo.

Marlene penou um pouco com os trabalhos de casa, mas, aos poucos, foi pegando o jeito. Esperava com ansiedade pela mudança da lua, suas regras vinham infalivelmente no primeiro dia da lua nova.

− Estamos casados há dez luas e nada de gravidez − Marlene queixou-se ao marido.

− Você agora virou índio, conta o tempo pelas luas?

− Estou falando sério, Oscar. Minhas regras vêm sempre com a lua nova.

− Minha parte eu estou fazendo, compareço diariamente − Oscar continuou, em tom de brincadeira.

***

Seu Manoel e dona Zezé faziam questão que a filha e o marido almoçassem com eles todos os domingos. Ela gostava de ir para a cozinha e preparar o prato favorito da filha: arroz de forno com bastante queiro e banana. Ele buscava duas garrafas de cerveja no seu armazém, colocava na geladeira e as bebia com o genro, antes do almoço.

− Quando vou ter um neto, Oscar?

− Não é falta de empenho, meu sogro.

Baixando a voz, seu Manoel disse:

− Marlene puxou a mãe, que só engravidou uma vez, cinco anos depois do nosso casamento.

Marlene entrou na sala e seu pai mudou de assunto:

− Mar de lama, este país está um mar de lama, o Lacerda tem razão. Não foi à toa que tentaram matá-lo.

− Estão dizendo, seu Manoel, que o Lacerda é que matou o Major Vaz e depois deu um tiro no pé.

− Você acredita nessa mentira deslavada? Foi o Gregório, jagunço do Getúlio quem fez os disparos.

− Eu não entendo nada de política, seu Manoel, O Gregório estava lá, na rua Toneleiros?

− O almoço está pronto, mamãe está chamando.

Alguns dias depois, em vinte e quatro de agosto daquele ano 1954, 0scar voltou do trabalho ainda pela manhã. Encontrou Marlene ouvindo rádio.

− Aqui também está havendo confusão nas ruas, Oscar?

− Não, Marlene, está tudo calmo, clima de velório. Em frente o Café Pérola tem uns grupinhos comentando o suicídio. Seu pai deve estar contente.

− Não diga isso, papai não gostava do Getúlio, mas não deve estar alegre com uma tragédia dessas.

− Vou aproveitar o feriado para arrumar a cerca dos fundos.

− Eu ouvi sua conversa com papai no domingo passado. Quer dizer que a culpa é minha, de novo! Se engravido, a culpa é minha, se não engravido, a culpa é minha. − disse Marlene magoada.

− Ninguém falou em culpa, meu bem. Seu pai comentou que sua… eles também tiveram dificuldade. Ficaram apenas com uma filha, que por sinal vale pelos dez que eles não tiveram. − Oscar estreitou Marlene entre os braços, − vai dar tudo certo. Uma hora essa barriguinha linda vai ficar igual a um barril.

− Quero ser mãe, Oscar. Quero sentir um filho crescendo aqui dentro.

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Uma coisa que Oscar sempre admirou em Marlene: sua tenacidade, mesmo quando ela apelava para medidas pouco ortodoxas.

(Continua no próximo capítulo.)

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bem querer – capítulo III

 

Oscar ficara horrorizado com o acidente. Foi dos primeiros a chegar ao local. O que viu no chão não era reconhecível como um ser humano. O mais espantoso foi a atitude da empresa: culpou a vítima ato inseguro. A esposa e os filhos tiveram de se contentar com a pensão e nada mais.

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A chapa “Pelas Reformas” venceu as eleições do Sindieletro por uma pequena margem de votos, e Oscar ingressou na política sindical. A presença de João Goulart como vice-presidente da república deu força aos movimentos de esquerda, que se agruparam em torno do PTB, partido do Jango. Leonel Brizola, cunhado do vice-presidente e governador do Rio Grande do Sul, e Miguel Arraes, governador do Pernambuco, eram os principais líderes do movimento que queria mudar o Brasil, com as reformas de base.

Oscar foi aderindo a essa corrente política, foi se transformando num militante engajado na luta do povo por mais justiça. Sua origem social e sua generosidade tornavam natural essa opção. Marlene votara sempre na UDN, seguindo o pai. Oscar usava toda sua eloquência para converter a esposa.

− Eu sofri na pele a exploração dos ricos. Uma vez, a situação ficou tão difícil que a sola do meu sapato tinha um buraco enorme e meu pai não tinha dinheiro nem para uma meia-sola.

− Ô meu bem, me corta o coração ouvir isso, mas quando você fala em exploração dos ricos eu penso no meu pai, que tem uma situação boa depois de muito trabalho. Não acho justo chamá-lo de explorador.

− Não estou chamando seu pai de explorador, não é uma coisa pessoal, é a conjuntura, o sistema de distribuição de trabalho e renda que é injusto.

− Papai lhe ofereceu sociedade no armazém, mas você não aceitou.

− Você volta para a solução individual. A questão é coletiva, é da sociedade como um todo.

− Outro dia papai citou você como exemplo de uma pessoa que pelo esforço próprio melhorou de vida, e pode conquistar mais, se…

− Se parar com estas ideias comunistas? Marlene, eu fico furioso quando me apontam como exemplo de sucesso para justificar a teoria absurda que o pobre é o culpado pela própria pobreza. É muita miopia, se não for má fé. Depois a gente conversa mais. Está na hora de ir para o trabalho.

− Não vai me dar um beijo?

− Claro que vou; sem seu beijo, eu morro antes de chegar à esquina.

Dia vinte e cinco de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência da república. Foi um blefe malogrado. Ele julgou que o congresso iria recusar sua renúncia e ele obteria maiores poderes para governar.

− Renúncia é um ato unilateral, não precisa da anuência do Congresso − ponderou o espertíssimo Auro de Moura Andrade, e declarou a vacância do cargo presidencial.

Os ministros militares se opuseram à posse de João Goulart, o sucessor constitucional do presidente renunciante, e a crise estava instalada.

Foi o batismo de fogo de Oscar na arte da mobilização do povo para a luta democrática. Participava das reuniões do Sindieletro e depois discutia com os colegas as ideias lá apresentadas. Ajudou na preparação de uma greve geral, caso Jango não assumisse a Presidência da República. A “Campanha da Legalidade”, comandada por Brizola, foi vitoriosa e em oito de setembro Jango tomou posse, mas com poderes limitados, pois o sistema parlamentarista havia sido implantado como solução conciliatória, em vista do veto militar.

As novas ideias políticas de Oscar abalaram suas relações com o sogro. Como todo prosélito, Oscar não perdia uma oportunidade de defender a doutrina recém-assimilada. Os tradicionais almoços de domingo se transformaram numa discussão sem fim. Quando Oscar se negou a comparecer ao almoço, dona Zezé proibiu discussão política e a paz foi restabelecida.

O ano de 1963 começou com o fim do parlamentarismo. Com um plebiscito, João Goulart recuperava a totalidade de seus poderes. Oscar, dispensado pela CEMIG de qualquer trabalho dentro da empresa (para evitar sua influência junto aos colegas), dedicou todo seu tempo à conscientização da categoria na luta pelas reformas de base: reforma bancária, fiscal, urbana, administrativa, universitária e, principalmente, a reforma agrária.

− Vamos mudar o Brasil, Marlene, vamos implantar o socialismo, a exemplo de Cuba, e acabar com o imperialismo norte americano.

− O socialismo me atrai, Oscar, mas o comunismo ateu me apavora; nós somos católicos, vivemos sob a proteção de Deus.

− Uma boa parte da Igreja nos apoia, meu bem. O pessoal da teologia da libertação, as Comunidades Eclesiais de Base, a Juventude Universitária Católica. Uma nova Igreja nasceu aqui e está se tornando realidade pelo Concílio Vaticano II.

− Belo Horizonte, Minas, o Brasil, as Américas e depois conquistaremos o mundo. Você parece o Dom Quixote.

− E você é a mais bela Dulcinea del Toboso da história.

− Um filho, Oscar, um filho para inaugurar esta nova era.

− Vamos engendrá-lo, meu amor, sinto que nestes novos tempos tudo é possível.

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Oscar se lembrou, comovido, da luta de Marlene por um filho. Este pensamento levou-o a 1953, quando voltaram da viagem de núpcias.

(Continua no próximo capítulo)

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bem querer – capítulo II

Oscar ainda ouvia os acordes vibrantes de Mendelssohn. Via Marlene, esplendorosa no seu vestido de renda branca. Uma cauda imensa a seguia, como a um cometa luminoso. “− Mais servira, se não fora pera tão longo amor tão curta a vida!” − o verso de Camões brotou, espontâneo, em seus lábios.

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− Entrego-lhe meu tesouro mais precioso, Oscar.

− Eu a protegerei com minha vida, seu Manoel.

Oscar levantou o véu, beijou o rosto sorridente de Marlene, sussurrando-lhe: − Você está linda, meu tesouro. − Deu-lhe o braço direito e conduziu-a ao altar mor, onde padre João os esperava, com ar solene.

Oscar, você recebe Marlene, aqui presente, como sua legítima esposa, de acordo com o rito de nossa Santa Madre Igreja?

− Sim.

Naquele sim, Oscar selava seu futuro. Abandonava seus planos de se tornar engenheiro e gozar do prestígio que a profissão conferia.

− Marlene, você recebe Oscar, aqui presente, como seu legítimo esposo, de acordo com o rito de nossa Santa Madre Igreja?

Sim.

O sim de Marlene vinha de seu coração. Desde a noite em que viu Oscar na quermesse, tentando ser notado por ela, seguindo-a no footing, cortando caminho entre as barraquinhas para se colocar bem à sua frente, respondendo: “O que tenho a lhe dizer pode demorar uma vida inteira”, teve certeza de haver encontrado o amor de sua vida.

Ego conjugo vos in matrimonium, in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen.

A melodia de Gounod inundou a matriz e a alma de Marlene. Ela se sentia cheia de graça como Maria. O filho, que até aquele instante era uma prova de seu pecado, tornava-se agora um dom de Deus para alegrar sua vida e uni-la a Oscar para sempre. De braços com seu marido, atravessou a igreja como quem anda sobre as nuvens e caiu nos braços de sua mãe. As lágrimas agora eram de pura felicidade.

***

O casamento foi bem apressado, o noivado durou menos de dois meses. A desculpa foi a doença da avó de Oscar, ela queria ver seu primeiro neto casado e tinham medo que morresse a qualquer hora. Dona Zezé, quando soube da gravidez da filha, ficou uma semana de cama, só de imaginar o falatório das suas amigas do Apostolado da Oração. Seu senso prático venceu, deixou o leito e preparou, em tempo record, uma festa que seria lembrada por muitos anos. Seu Manoel foi surpreendentemente compreensivo: – São os arroubos da juventude. Ofereceu uma pequena sociedade ao genro, mas Oscar não aceitou.

 

        – É sua oportunidade de continuar os estudos, meu bem – insistiu Marlene.

– Não quero viver na sombra do seu pai, Marlene.

Ele conseguiu trabalho na CEMIG, criada naquele ano de 1952 pelo Governador Juscelino Kubitschek.

Depois de uma insistência enorme e para evitar uma primeira briga com a esposa, Oscar aceitou passar dez dias no Rio de Janeiro, em viagem de núpcias. Presente dos padrinhos da noiva.

Marlene levou o marido para conhecer Copacabana. Ao passarem em frente ao Copacabana Palace, Marlene disse ao marido:

– Ainda vamos nos hospedar aqui.

– Prefiro a pensão da dona Duchinha, lá não tem ar condicionado e você dorme nuazinha.

− Você não presta, Oscar.

Marlene ensinou o marido a amar a “cidade maravilhosa” com sua combinação de praia e montanha, natureza e charme urbano, com seu clima sensual e a alegria de seu povo descontraído e caloroso.

Envolvidos pela magia da cidade, os dois viveram dias de intensa intimidade. O prazer que um proporcionava ao outro tornou bem concreta a experiência de “dois numa só carne”. O amor já não era uma promessa romântica, mas uma realidade.

Na última noite que passaram no Rio, Marlene teve um sangramento. No outro dia, procuraram um médico, que estranhou a preocupação do casal.

− A senhora menstruou, somente isso.

− Mas ela está no terceiro mês de gravidez.

− A senhora fez o Galli Mainini, o teste do sapo?

− Não, doutor, mas eu tinha todos os sintomas…

− Vamos fazer o seguinte, procure um laboratório e faça o exame, depois a senhora volta aqui com os resultados.

− Nós somos de Belo Horizonte e estamos com viagem marcada para hoje à noite.

− Podem deixar para fazer o exame em sua terra. Seu estado está bom, minha senhora. Não se preocupe.

Passaram o resto do dia na pensão. Marlene quis ligar para sua mãe, mas Oscar a convenceu a esperar.

− Sua mãe vai ficar alarmada. Amanhã estaremos em casa.

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Galli Mainini, o teste do sapo. Oscar ficou pensando na reviravolta que um fato, uma decisão acarretam na vida das pessoas. Como teria sido sua história se Marlene tivesse feito o teste? Se ele tivesse feito o curso de engenharia. Talvez não teria se tornado um líder sindical e permanecido alienado, como era aos vinte anos.

(Continua no próximo capítulo.)

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bem querer – capítulo I

 

PRÓLOGO

− Chega de política, Oscar, hoje quero você alegre, animado! A partir de hoje você é sexy.

− Sexagenário. Em alguns momentos de minha vida duvidei que chegasse aos sessenta anos.

Oscar e Marlene estavam jantando no Copacabana Palace, onde estavam hospedados.

− Um brinde ao homem mais importante do mundo, aquele que é dono do meu coração.

− Se sou dono de seu coração, além de ser o homem mais importante do mundo sou o mais rico do universo.

Beberam do líquido precioso. Oscar olhou para Marlene através da taça borbulhante.  

Seus olhos se desfocaram. Uma melodia veio vindo lá do fundo da memória…

 

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O alto-falante tocava Zíngara, “que Jorge oferece a Vânia, como prova de estima e consideração”. Oscar ficou olhando as moças passarem em footing, para ver se descobria quem era a Vânia. Deveria ser morena, com grandes argolas de ouro nas orelhas, saia longa, estampada, lenço vermelho na cabeça. E Jorge, seria aquele rapaz de jaquetão azul-marinho, cabelos englostorados, bigode e fartas costeletas?

Aí ela passou de braço dado com duas amigas. Rosto largo, nariz aquilino, queixo afirmativo e os cabelos cor de fogo. Oscar a seguiu, a uma distância que lhe proporcionasse uma boa perspectiva, mas perto o suficiente para não perdê-la de vista. Ela andava graciosamente, ora olhando para a amiga à sua esquerda, ora se voltando para a da direita. Saia godê, azul celeste, blusa de seda branca e um cinto de couro marcando a cintura delicada, o que realçava os ondulantes quadris.

Oscar atalhou por entre as barraquinhas e se posicionou à frente das garotas, numa posição em que fosse visto por elas. Elas passaram sem olhar para ele. “Quem desdenha quer comprar”, pensou Oscar e ficou esperando que elas dessem a volta à quermesse. Elas se aproximaram em silêncio, olhando para frente, com a nítida intenção de não olhar para ele. No último momento ela se traiu e lhe lançou um olhar rápido, baixando os olhos em seguida.

“Ouviremos agora Fascinação, que alguém oferece à deusa de cabelos de fogo, como tributo à sua beleza.” Quando elas passaram, Oscar fez uma vênia e recebeu um sorriso, apenas esboçado.

Na próxima volta, Oscar se posicionou bem na frente dela.

− Posso falar contigo?

− O que você tem a me dizer? − ela respondeu, séria.

− Vou precisar de um tempo para dizer tudo.

− Você tem dois minutos, é o bastante? − ela continuava séria.

− O que tenho a lhe dizer pode demorar uma vida inteira.

− Não sei se quero passar a vida lhe ouvindo − ela disse com um leve sorriso.

− Meia hora, para começar, aí você avalia.

− Estamos atrapalhando o footing. Vamos caminhar um pouco.

 

***

 

Foi assim que aquelas duas vidas se encontraram e uma foi se embaralhando com a outra. Marlene era filha única de uma família remediada. O pai, seu Manoel, era dono do principal armazém das redondezas. Dona Zezé, sua mãe, era quem organizava as coroações de Nossa Senhora e, na sobriedade de sua aparência, irradiava uma beleza que a destacava entre as beatas do Padre João. Marlene tinha a quem puxar.

− O que você faz na vida, rapaz?

− Estou cursando a terceira série do científico no Colégio Estadual. No fim do ano vou tentar o vestibular para engenharia.

− Você é católico?

− É claro, seu Manoel, meu pai é vicentino.

− Então eu devo conhecer, como ele se chama?

− Pedro Lino.

− Ah, o Pedro Lino; pobre, mas honesto; isso é o que importa. Você tem futuro, meu rapaz. Se estuda no Colégio Estadual, deve ser muito inteligente, lá só entra a nata ou jovens brilhantes.

Oscar foi admitido como namorado e começou a frequentar o sobrado, a casa mais imponente da Vila Concórdia.

O casal estava muito apaixonado, o que atiçava a vigilância da dona Zezé. O Diabo é tinhoso e ensina astúcias aos enamorados. E os dois caíram em tentação. A sexta-feira seguinte era a primeira do mês e dona Zezé levou a filha para confessar. Padre João demorou mais tempo que o costume para ministrar a absolvição, o que deixou a mãe de orelha em pé.

− Você tem alguma coisa que queira me contar, minha filha?

− Não mamãe, está tudo bem. Padre João é muito antiquado e fica pegando no pé da gente.

A vigilância foi redobrada. Aliás, desnecessária, pois Marlene impôs ao namorado uma abstinência rigorosa: − “Foi uma única vez, a segunda só depois do casamento”. Na volta da lua, a menstruação não veio.

− Fique calma, Marlene, vamos esperar mais um pouco.

− Eu estou grávida, Oscar, eu tenho certeza. Vi os sintomas na Seleções, estou com todos.

− Pode ser rebate falso.

Marlene começou a chorar.

− Você não quer se casar comigo! Quer pular fora!

 − Que isso, Marlene, claro que não! Só queria uma confirmação. Afinal é o meu futuro, o nosso futuro. Casando agora, como eu vou estudar?

 

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Olhando as bolhas do champanhe subindo, Oscar se lembrou de um outro brinde…

 

(Continua no próximo capítulo.)

 

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Conheça o autor

Autor

Ildeu Geraldo de Araujo é mineiro de Belo Horizonte, nascido em 1938. Trabalhou como engenheiro mecânico e eletricista por 27 anos e como consultor por 23 anos. Começou a escrever em 2010, na Oficina de Contos de Sérgio Fantini.

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