− PAI!!!

Gritei sem querer; meu pai apareceu na hora, pegou minha mão e me tirou do meio da roda de meninos, que se abriu. Meu pai não disse nada e me levou para casa.

Minha mãe perguntou o que tinha acontecido.

− Nada – meu pai disse – Paulo levou um soco no peito.

− Deixe eu ver. Não tem marca nenhuma. Quem bateu nele?

− Um menino um pouco maior do que ele. Coisa de criança.

− Tá vendo, Paulo, é por isso que não gosto que você vá ao Cine Grátis, só tem moleque. Beba, é água com açúcar.

Custei a dormir. Quando fechava os olhos, via o Carlitos fazendo palhaçada na tela do Cine Grátis, o Pedrão empurrando todo mundo, dando peitada e ombrada. Eu firmei nas pernas e escorei ele. Ele mandou um soco no meu peito, eu vi estrela e fiquei sem ar.

Por que eu fui gritar? Devia ter dado uma rasteira nele. Aí é que eu ia apanhar mesmo. Vou arrumar um soco inglês e arrebentar a cara dele. Se eu tivesse um cabo de aço ele ia ver. O Leão não para de latir.

Minha mãe me contou que quando eu era pequeno, era muito doente. Ela tinha medo que eu morresse, igual meu irmão mais velho, que morreu com três dias. A Vó me deu um gato e um cachorro, os dois eram pretos. Disse pra minha mãe: “O que tiver de acontecer com o Paulo, vai acontecer com o gato ou com o cachorro”.

Do gato eu nem me lembro; minha mãe disse que ele foi ficando pesteado e morreu quando eu era neném. Leão, o meu cachorro, foi atropelado e a mão direita, lá dele, foi esmigalhada e ficou presa por um pedaço de pele. Quando ele andava manquitolando em três patas, balançava o coto de mão.

No dia seguinte ao Cine Grátis, acordei normal, tomei meu café com leite e já estava na porta para sair quando minha mãe perguntou:

− Melhorou, Paulo?

− Melhorei de quê?

− Da dor no peito.

Aí voltou tudo. A dor no peito, a falta de ar, a vergonha de ter gritado, o ódio do Pedrão. Na escola eu tentei trocar a figurinha da Esfinge pelo soco inglês do Alfredo, mas ele pediu uma fortuna, queria a coleção completa das Balas Atlas, o saquinho de bolas de gude e o santinho de Santo Antônio que eu tinha ganhado na aula de religião. Acabei concordando. Quando estávamos fazendo a troca a D. Margarida viu a gente conversando, tomou o soco inglês, o álbum de figurinhas, o santinho e ainda pôs a gente de castigo.

Na matinê de domingo assisti “Tarzan e a Fonte Mágica” com o Alfredo. Eu gostava mais do Tarzan antigo, o John Weissmuller.

− O Lex Barker é muito melhor, é mais novo e mais forte.

− É, Alfredo, mas o John Weissmuller luta melhor, lembra da luta dele com o leão no “Tarzan e as Sereias”.

− Não tinha leão neste filme, você tá doido.

− Então foi no “Tarzan e a Mulher Leopardo”.

Voltei pra casa discutindo com o Alfredo. Quando passamos perto da igreja, vimos o Pedrão jogando bola com a turma dele. Eu chamei o Alfredo para o outro lado da rua. Acelerei o passo. Quando já estava para dobrar a esquina ouvi: “PAIÊÊÊ!”

− Que cara é essa, Paulo?

Não respondi nada pra minha mãe. Almocei calado e fui ler debaixo do pé de manga. Mas não conseguia me concentrar no Robinson Crusoé. Aquele “PAIÊÊÊ!” não saía da minha cabeça. Vou matar aquele desgraçado. Fiquei imaginando que eu era o Tarzan, pegava o Pedrão pela gola, suspendia ele bem alto e jogava no meio de um bando de tigres famintos. Quando eu fosse engenheiro e chefe da Fábrica de Tecido da Renascença, o Pedrão ia me pedir emprego. Contratava ele como meu engraxate. Ele ia viver ajoelhado aos meus pés, engraxando meus sapatos. Se tivesse outra guerra, eu ia ser general e mandava o Pedrão pra batalha mais violenta. Ele ia acabar num campo de concentração, morrendo numa câmara de gás.

Eu acabei indo ao Cine Grátis, na quarta-feira seguinte. Quando saí de casa, deixei o portão aberto e meu cachorro me acompanhou. Fiquei mais atrás, para evitar confusão, como havia prometido à minha mãe. Subi numa pilha de tijolos para ver melhor. No intervalo, enquanto o filme do Carlitos era rebobinado, o Pedrão me achou.

− Desce daí, medroso. Você não é homem não?

− Desci com toda calma e quando estava em frente ao Pedrão, gritei com toda força:

− Ôôô, ô-ô-ô-ôôô- ô-ô-ô-ôôô!

Um leão enorme saltou sobre o Pedrão e o derrubou, colocando a pata no seu peito.

Pedrão começou a chorar e a pedir perdão. Sua calça estava molhada e tinha uma poça enorme de xixi em volta dele. Eu ordenei ao leão:

− Basta. Vamos poupá-lo.

Saí de lá com passos firmes. O leão ia ao meu lado rosnando e mostrando os dentes para as pessoas, que nos olhavam morrendo de medo.

Quando virei a esquina, Leão estava manquitolando ao meu lado.