bemquerer capa

 

O devaneio levou Oscar para um tempo de muita esperança, muita luta e que resultou em muito sofrimento.

>>> 

bemquerer capa CAPVI

− Desse jeito vai ser difícil eu engravidar, só se for por obra do Espírito Santo. Você ficou dez dias no Rio, Oscar, sem mandar ao menos um telegrama!

− Venha cá, meu bem, vamos tirar o atraso.

− Ah, não! Primeiro você vai tomar um banho e comer alguma coisa.

− Então vem comigo, preciso lhe contar. O comício foi lindo, tinha umas duzentas mil pessoas. O discurso do Brizola foi arrasador. Ver o Prestes sendo ovacionado, foi demais; eu chorei feito uma criança.

Oscar saiu do chuveiro, envolveu a mulher com seus braços e beijou seus lábios com paixão.

− Agora eu vou ter que tomar banho, você me molhou toda.

− O Arraes falou bem como nunca. Sou fã do Arraes, ele é mais pé-no-chão que o Brizola, mais autêntico. Agora, o discurso do Jango foi uma apoteose. Quando ele anunciou a desapropriação das terras ao lado das ferrovias e rodovias, o mundo veio abaixo. As reformas estavam acontecendo! Anote essa data, Marlene: 13 de março de 1964. Eu vi a História sendo escrita!

− Está bem, meu Che Guevara − disse Marlene se enxugando, − vou preparar um mexido para você.

Quando a comida ficou pronta, Marlene chamou pelo marido. Ele não respondeu. Encontrou-o no quarto, ferrado no sono. Ela ficou olhando seu homem com um misto de ternura e decepção, levantou os olhos e viu, no espelho do guarda-roupa, uma mulher no esplendor de seus trinta anos. Passou a mão pelo seu ventre: reto, liso, ocioso, estéril.

Oscar acordou tarde. Marlene estava lendo o jornal.

− Estou com medo, Oscar.

− Medo de que, meu anjo?

− Vai haver reação. Eles não vão perder seus privilégios e ficar quietos.

− O que eles podem fazer? É a força do povo! A força avassaladora da História!

− A TFP já marcou uma passeata em São Paulo para amanhã.

− Esses almofadinhas não têm colhões para enfrentar o proletariado.

− Pode haver uma guerra civil. E você, como diretor de sindicato, vai estar envolvido.

− Eles vão afinar. O esquema militar do governo está bem articulado. Ninguém vai enfrentar o exército. A reforma agrária é um decreto do Presidente. E, para dizer a verdade, é tímida, são somente as terras perto das ferrovias e das rodovias federais.

Marlene entregou o jornal ao marido e foi cuidar do almoço. Oscar leu as notícias do Comício da Central do Brasil.

− O almoço está pronto, Oscar.

Oscar entrou na cozinha sorrindo. Abraçou a mulher por trás e ficou olhando as panelas fumegantes por cima dos seus ombros.

− Você me saiu uma boa cozinheira.

− Mulher de proleta tem que se virar.

− Deixe-me ver estas mãozinhas. Que horror, suas unhas estão um lixo − disse com voz afetada, − que mãos lindas, fortes, mãos de quem trabalha, mãos de uma dona de casa.

− Gostaria que fossem as mãos de uma mãe de família.

Sentaram-se à mesa e começaram a almoçar.

− Podemos adotar uma criança.

− Você também já desistiu? − Marlene olhou Oscar nos olhos.

− Então você desistiu?

− Foi castigo, Oscar. Ninguém foge da justiça de Deus.

− Justiça de Deus! Castigo! O que é isso, Marlene?

− Nós não devíamos ter feito aquilo. Podíamos ter esperado o casamento.

− Ora, Marlene, nós só nos casamos porque você cismou que estava grávida.

− Então você só se casou comigo porque eu fingi que estava grávida? − disse Marlene magoada.

− Eu não quis dizer isso, meu bem. Casei-me com você porque te amo. Mas nós poderíamos ter esperado eu me formar e a nossa vida seria bem diferente.

− Você me seduziu, Oscar, esqueceu? Eu pedi para você parar.

− É, me pediu para parar com a voz sumida, os olhos revirados, a língua enrolada com a minha e as unhas cravadas em minhas costas. Até rasgou minha camisa. E era uma camisa novinha.

− Minha língua não estava enrolada com a sua, estava quietinha! − Marlene começou a rir. − Você é impossível.

A sesta foi deliciosa.

Os acontecimentos se precipitaram. “Eles” reagiram, conforme Marlene havia previsto. Forças políticas e econômicas; ameaça de intervenção americana; o medo do comunismo. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu quinhentas mil pessoas em São Paulo. Em 31 de março de 1964, tropas do exército saíram de Minas, com o apoio da polícia de Magalhães Pinto.

No dia seguinte, Oscar chegou em casa à noitinha; estava exausto, mas ainda com esperança.

− Ô, Oscar, você me mata de aflição. Você sumiu. Dois dias sem dar notícias.

− Desculpe, meu bem. Não deu. Foi uma loucura de reuniões e reuniões.

− Pra que, Oscar? Não vai adiantar nada. Você tem é que ficar quieto, se esconder.

− Vai ter resistência, Marlene. Não podemos entregar os pontos assim, sem fazer nada. O Jango foi para o Rio Grande, tem o apoio do terceiro exército.

Dois de abril de 1964: Ranieri Mazilli assume a Presidência interinamente e João Goulart se exila no Uruguai.

No dia três, Oscar não se levantou da cama. Preocupada, Marlene foi acordá-lo.

− Você está sentindo alguma coisa, meu bem?

− Estou com uma vontade enorme de morrer, Marlene, de sumir no mundo. Se não fosse você, não sei o que faria.

Marlene passou a mão nos cabelos dele e beijou carinhosamente sua testa.

− Estou preocupada com você. Papai disse para você passar uns tempos na fazenda do tio Juquita, lá em Corinto.

− Você vai comigo?

− Não, Oscar, estou pensando em entrar para o cursinho. Quero fazer vestibular no final do ano, já que não posso ter filhos. Você concorda?

− Você não precisa de minha autorização.

Oscar foi preso na Estação Rodoviária, quando tentava embarcar para Corinto.

<<< 

Oscar preferia pular as páginas da memória que viriam. Vendo Marlene através da taça, sua figura cresceu em sua lembrança e em seu coração.

(Continua no próximo capítulo)