Quando entrei nesta sala pela primeira vez, estava em pouco intimidado. Quem eu encontraria? Seriam pessoas cultas, já acostumadas a escrever? Seriam jovens talentosos e arrogantes que desdenhariam o engatinhar de um velho nos caminhos da literatura? O despojamento do ambiente me tranquilizou. Fui me sentindo em casa e acolhido pelos futuros colegas, bem semelhantes a mim no desejo e na pouca experiência com as letras. Passados três anos, esta sala é minha casa. Aqui destampo a minha caixa de pandora e liberto meus fantasmas.

Estava começando a apresentar meu novo texto para os colegas e Ricardo, nosso instrutor da oficina de contos, quando elas invadiram a sala:

− Finalmente o encontramos, seu patife, percorremos a cidade inteira à sua procura. − Disse a mais velha, me encarando com fúria.

− O que você está fazendo conosco é imperdoável. − Disse, com mágoa, a mais jovem, uma linda moça de 22 a 25 anos.

Ricardo, com sua calma habitual, se levantou e foi até elas:

− Senhoras, por favor, acalmem-se. Estamos trabalhando. As senhoras não podem entrar aqui deste jeito. Se quiserem conversar com o Afonso, esperem, na sala ao lado, ele terminar de apresentar seu trabalho.

− Mas é exatamente isto que queremos impedir; ele não pode apresentar este monstruoso texto. Se vocês ouvirem o que ele escreveu, tudo estará perdido, o texto já não pertencerá somente a ele. Pertencerá a todos vocês e nosso destino estará selado.

− Não estou entendendo, quem são vocês afinal? − Perguntou Ricardo.

− Eu sou Clotilde e ela é a Mirtes.

Todos olharam para mim. Era a coisa mais louca que jamais me acontecera. A perplexidade me deixou mudo.

− Não seja cínico − disse Clotilde, a mais velha, − você sabe quem somos melhor que nós mesmas.

− Clotilde e Mirtes são as personagens do meu novo conto, este que trouxe para os trabalhos de hoje.

− Isto é uma impostura, vocês leram o conto do Afonso e armaram este teatro − disse Luiz, um dos colegas de oficina − ou foi você que produziu esta farsa, Afonso?

− Não, pessoal, não armei nada. Posso garantir que ninguém leu o texto. Eu passei o dia em casa, escrevendo-o, imprimi e vim direto para cá.

− Estamos diante de um fato inusitado − Ricardo ponderou − vamos admitir, como hipótese de trabalho, que o Afonso seja um Pirandello tupiniquim e que nossas belas amigas, Clotilde e Mirtes, sejam duas personagens à procura de um autor. Por favor, sentem-se e nos contem o que está acontecendo.

− É muito desagradável não ter um passado. De repente sou uma mulher de 45, 46 anos: − Cotilde se dirigiu a Ricardo, − ele poderia ser mais preciso! Nem minha idade ele definiu! Você, como professor, deveria ensinar isto a ele. − Prosseguiu: − Estou grávida, aos 45 ou 46 anos − olhou-me, furiosa,  − tenho um trabalho de parto horroroso: parto normal, de cócoras, pois ele me fez “alternativa”. Fico sabendo que o filho não é meu, alugara minha barriga: a dondoca da Mirtes queria um filho, mas não queria estragar sua carreira de modelo. Aí o desgraçado me dá um furioso instinto maternal. O filho é meu! Ninguém vai tomar o meu filho!

Após um breve silêncio Mirtes interveio:

− Eu entendo a sua dor, Clotilde. Mas eu preciso desesperadamente desse filho. Você é uma mulher realizada, é uma lutadora. Venceu todas as batalhas. Minha vida é um vazio. Quando minha beleza acabar, não restará nada.

− Que batalhas eu venci? Onde você leu isto? − atalhou Clotilde.

− Está nas entrelinhas.

Clotilde bufou furiosa.

− Nem um palavrão eu posso gritar. Ele me fez assim, elegante, superior, abafando em meu peito um turbilhão de emoções. Esta sonsa sabe ler nas entrelinhas, faz de sua fragilidade uma arma para manipular os outros.

Mirtes começou a chorar. Disse, virando-se para mim:

− O que me magoa mais é você me desejar tanto e me amar tão pouco. Fez-me bela e vazia. A ela você deu personalidade, força, coragem. Eu desfilo pelas passarelas esta beleza frívola e passageira que temo perder a cada momento de minha vida.

− Vida? Quem disse que nós temos vida? Somos esboços de personagens de um conto mal escrito por escritor iniciante, de uns setenta a oitenta anos, que vive na periferia do mundo. Seremos conhecidas por uma meia dúzia de leitores da família dele ou de seu círculo de amigos.

Fiquei confuso e triste por causar tanto sofrimento. Recolhi as cópias do famigerado conto que havia distribuído entre os colegas, com a intenção de destruí-las. Ricardo me impediu:

− Não faça isso, Afonso. Você pode não ter um grande conto ainda − enfatizou ainda, − mas tem duas personagens interessantes e − acrescentou sorrindo − bastante vivas. Não as abandone. Hoje vamos ficar por aqui.

Enquanto pegava minha pasta e arrumava meus papeis, Clotilde e Mirtes desapareceram. Deixei os colegas se despedindo de Ricardo e comentando sobre a aula; desci apressadamente temendo defrontar-me com elas na portaria do edifício. Não havia sinal delas. Tomei, aliviado, um taxi de volta para casa, elas estavam sentadas no banco de trás.

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