Assim que o Dr. Gilson mencionou doação de órgãos, uma dor aguda atingiu a alma de Marcos. Fi-cou calado, cabisbaixo, os braços cruzados apertando o peito. O médico tocou seu ombro e o deixou sozi-nho. Marcos desabou, chorou silenciosamente todas as lágrimas que havia reprimido.

Tavinho era a alegria dos pais. Aos 26 anos estava fazendo residência no Hospital das Clinicas, de-pois de um brilhante curso de graduação. Os amigos e amigas tinham nele seu centro de convergência. Marcos e Maria Helena recebiam a turma em sua casa como filhos. De repente ele estava no UTI, em coma, atingido por um AVC gravíssimo.

Marcos sabia que a situação do filho era muito grave. Dr. Gilson o preveniu, desde o início, sobre as poucas possibilidades de uma recuperação plena. Mas ele acreditou firmemente num milagre e sua fé deu forças a Maria Helena, evitando que ela caísse no abismo do desespero. Por dez dias a vida ficou suspensa, dependurada nas oscilações de cardiógrafos, no bip bip dos indicadores de pulso. Os boletins médicos eram ouvidos com a respiração interrompida e o coração disparado. Depois veio a estabilidade. A situação não piorava, mas também não havia nenhuma melhora.

Após a conversa com Dr. Gilson, Marcos foi para a visita diária â UTI. Aquele era para ele um mo-mento de angústia. Ver seu filho inerte, entubado, ligado por fios a um monte de aparelhos, lhe dava uma tristeza sem tamanho. Maria Helena já estava lá. Conversava animadamente com o filho, como se ele pu-desse dialogar com ela: – Aline ligou outra vez. Mandou um beijo… Ela é mesmo uma gracinha. Já a Michelle é uma interesseira… Só amizade? Ela está doida pra casar… Não caia nesta, Tavinho. Você tem que terminar a residência e depois aproveitar um pouco a vida. Viajar…

Contemplando o desvelo de Maria Helena, Marcos sentiu muita pena pois Tavinho não estava mais ali. Como dizer isto a ela?

Após saírem do UTI, Marcos colocou o braço sobre os ombros dela e foram para o jardim ao lado do hospital. Sentaram-se perto de um pé de manacá todo florido.

− Tavinho adora este perfume, diz que é o cheiro da casa da Vovó − comentou ela − Ele adora a na-tureza: as flores, as plantas, os passarinhos, a vida.

− Maria Helena, o Tavinho está morto.

− Meu Deus, não! Ele está vivo! Acabamos de vê-lo, está respirando, seu rosto está quentinho. − É artificial, Maria Helena. Seu cérebro parou. Tavinho morreu. − Não repita isto! Não repita isto! − Ele apertou-a contra si. Ela caiu num choro desesperado. Ficaram ali, abraçados, compartilhando uma dor que nenhum pai, nenhuma mãe quer sentir.

Voltaram para o hospital em silêncio. Maria Helena queria ouvir do Dr. Gilson o veredito fatal.

− Como o senhor pode ter certeza que o Tavinho…

− A atividade cerebral cessou completamente, há ausência dos reflexos do tronco cerebral.

− Mas… a atividade… cerebral…?

− Não retornará. Há ausência de perfusão sanguínea e de atividade metabólica cerebrais.

Maria Helena ainda sustentou por alguns segundos o olhar do médico, depois seus olhos foram se enchendo de lágrimas.

− Quando… vocês… vão desligá-lo?

Dr. Gilson abandonou o tom profissional: − Cada coisa no seu tempo; conversem entre vocês; faremos o que decidirem.

Foram para a capela que estava vazia. Maria Helena chorou convulsivamente por muito tempo. Marcos olhava para ela com ternura. Quando sua esposa se aquietou, segurou suas mãos e disse: − Acho que o Tavinho gostaria que seus órgãos fossem doados. − Maria Helena olhou para o marido com os olhos inflamados: − Retalhar o meu filho? Você quer despedaçar nosso filho e distribuir? Como você pode me dizer uma coisa destas? − Nosso filho está morto, meu bem, ele nunca negou ajuda a quem precisasse. “Ser médico é salvar vidas”. Lembra do seu discurso de formatura? − Maria Helena não respondeu. Ficaram um longo tempo em silêncio.

− Meu bem, vamos para casa? Eu preparo alguma coisa para comermos. − Ela não respondeu. − Precisamos sair deste hospital um pouco, Maria Helena. − Não, não. Vá você.

Em casa, Marcos se livrou dos sapatos incômodos, preparou um spaghetti ao alho e óleo e o sabo-reou com se fosse uma iguaria, moeu e preparou um café sentindo seu sabor e seu cheiro reconfortantes.

De volta ao hospital viu, pela porta da capela, Maria Helena conversando com uma senhora. Quan-do esta se retirou sentou-se ao lado da esposa.

− O filho daquela senhora está internado aqui, esperando um coração. É o primeiro da fila de transplante, mas seu estado é desesperador. − Maria Helena apertou com as duas mãos a mão de Marcos − Você tem razão, querido, o Tavinho doaria até seu coração.