Cláudio vagava sem destino pela cidade. Percebeu que estava perto do hospital. Sem nada para fazer resolveu visitar seu sogro. A enfermeira advertiu:

− Seu Gil está muito agitado hoje.

− Pode deixar, vou com calma.

Abriu a porta e entrou, cautelosamente, Gil batia furiosamente no teclado de seu laptop:

− Esta porcaria não acende.

− Deixe-me ver, Seu Gil, quem sabe eu consigo.

− Fique longe! Ninguém mexe no meu computador.

− Sou eu, Seu Gil, Cláudio.

Depois da doença, Gil ficou agressivo com a maioria de seus parentes, Cláudio era uma das poucas exceções.

− Ah, é você. Veja se consegue ligar esta porcaria de computador.

− Onde está o carregador da bateria?

Gil deu um tapa na cabeça, olhou para Cláudio com um sorriso, abriu a gaveta da mesa, apanhou a peça e ligou o laptop.

− O que o senhor anda escrevendo?

− Umas bobagens, lembranças fugidias. Acho que vou chamar de “Memórias de um Desmemoriado”.

− Posso ver?

− Você pode. Você sabe valorizar um bom texto. − Gil estava naquela fase do Alzheimer em que momentos de lucidez se alternam com o caos da demência.

Cláudio passeou pelos arquivos e ficou triste com a confusão, a falta de sentido das informações que o sogro ia salvando no laptop, reflexo de sua memória, sem nexo, fragmentada. “Que fim melancólico para um grande escritor, autor das novelas de maior sucesso da televisão. A memória é a mina de um escritor, é lá que ele vai buscar a matéria prima para sua obra.” Ficou pensando no vazio da própria mina, após haver revelado algumas pepitas tão promissoras.

Gil havia se deitado e dormia. Cláudio estava para desligar o computador, quando viu um arquivo com o nome de “feito.docx”. Passou as próximas duas horas lendo uma das mais fascinantes histórias que havia conhecido. Com medo de que Gil destruísse aquele tesouro com um comando desastroso, ele salvou o arquivo na nuvem. Saiu silenciosamente.

Em casa, Cláudio acessou o arquivo e leu novamente o texto do sogro. Era uma bela história de amor, abrangendo trinta anos da vida de um casal. O enredo era vinculado a fatos históricos daquele período, o que lhe dava autenticidade e vigor. Os personagens bem construídos pareciam ganhar vida própria. Daria uma excelente minissérie. Só faltava o final.

***

− Como vai, Cláudio, o que você tem feito?

− Ando escrevendo, Haroldo − mentiu Cláudio. Haroldo era um colega de faculdade que se deu bem como produtor de televisão.

− Se você tem uma história de época, pode me interessar. Estou num apuro feio, pois apostei no Wellington para escrever uma minissérie e ele fracassou redondamente. A sinopse era ótima, mas o texto final uma porcaria.

O coração de Cláudio disparou. A novela do sogro atendia aos requisitos apresentados pelo Haroldo. Os demônios se lançaram, sem tréguas, sobre a alma do frustrado escritor.

− Que coincidência, Haroldo, acho que posso lhe tirar dessa enrascada. Vou lhe mandar a sinopse de um dos meus trabalhos.

− Nada de sinopse, preciso de um texto pronto. As gravações começam em quatro semanas.

− Você é um cara de sorte. Tenho uma novelinha quase pronta.

Naquela mesma tarde os dois se encontraram. Haroldo adorou a história.

− E o final, quando você me entrega?

− Em duas semanas.

− Nada disso, você tem cinco dias.

Cláudio gastou os próximos três dias tentando escrever o capítulo final de “Um Amor do Século XX”. Os demônios não têm talento, as Musas se abstiveram, não queriam ser cúmplices. Voltou ao hospital em busca de socorro.

− Como vai, sogrão?

Gil estava alheio, olhando para o nada, através da janela. Cláudio ligou o laptop e deu uma varredura completa nos arquivos. Encontrou um com o nome de “feitofim.docx”. Ao tentar abri-lo o sistema lhe solicitou uma senha.

− Seu Gil, o que tem de tão valioso nesse arquivo feitofim.docx?

− Cogito ergo sum.

− O senhor protegeu o arquivo com uma senha. Qual é a senha?

− Dubito, ergo cogito, ergo sum.

− O senhor está muito filosófico. O que significa “Dubito, ergo cogito, ergo sum”?

− Je pense, donc je suis.

Cláudio se lembrou das lições de francês e digitou como senha: “Descartes”. O arquivo não abriu. Tentou “René”, “Renédescartes”, “René_Descartes”. Fracasso.

− A senha, Seu Gil. Qual é a senha?

Gil começou a cantar uma música gregoriana.

Cláudio voltou para casa desanimado. Passou a noite tentando escrever o capítulo final da minissérie. Levou o resultado de seu esforço para o Haroldo.

− Que porcaria, Cláudio. Nem parece ser do mesmo autor que escreveu este texto maravilhoso.

− A inspiração vem quando ela quer, Haroldo. Preciso de mais alguns dias. Estou muito estressado.

− Sinto muito, cara, mas eu trabalho com prazos. Dou-lhe mais dois dias.

De volta ao hospital, Cláudio levou uma lata de doce de leite, a iguaria preferida do sogro. Quando Gil tentou agarrar a lata, Cláudio a reteve:

− Primeiro a senha do arquivo “feitofim.docx”.

− Jota ó um nove três zero.

Cláudio digitou jo1930. Nada.

Depois de tentar todas as variações com letras maiúsculas e minúsculas, ele desistiu.

De madrugada o hospital comunicou a morte de Gil. A tristeza de Cláudio enterneceu sua esposa.

− Agora entendo por que papai foi amável com você até o fim. Você foi um verdadeiro filho para ele.

− Você não sabe o que está dizendo − disse Cláudio, esquivando-se do abraço da esposa.

Um padre chegou para realizar as exéquias do ex-colega de seminário. Cláudio lhe disse que Gil, nos dias anteriores repetia seguidamente: “jo1930”

− “Jo 19,30” é um versículo do Evangelho de João: ‘Ele tomou o vinagre e disse: “Tudo está consumado.” E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.’

− Obrigado, padre, parece que ele estava prevendo o seu fim.

Assim que teve oportunidade, Cláudio correu para o computador e tentou todas as variações da expressão “Tudo está consumado” e fracassou sempre. Foi ao hospital buscar os pertences do sogro. Entre eles havia uma bíblia em latim.

Cláudio digitou: Consummatum est.

A minisérie “Um Amor do Século XX”, de Gil Cardoso, foi um retumbante sucesso. Cláudio se tornou o administrador das obras do sogro.