Carpe Diem
Um iate foi encontrado nas proximidades da Ilha da Trindade com sete corpos a bordo, mortos supostamente por envenenamento. A tripulação era formada pelo Capitão Loukas Vyntra, grego, 69 anos e a comissária Frida Vyntra, alemã, 59 anos. Os passageiros eram todos brasileiros e engenheiros. A lista completa é a seguinte: Roberto Mourão, 64 anos, Antônio Rodrigues, 63 anos, Alberto Guimarães, 64 anos, Paulo Penido, 65 anos e Juliano Ferreira, 63 anos.
O barco dispunha de um sistema de som que gravou as conversas entre as pessoas.
Eis a transcrição da gravação:
− Senhores, o Engenheiro me orientou a dar- lhes as boas vindas e a proporcionar-lhes todas as comodidades. Espero que estejam bem instalados em seus camarotes. O jantar será servido dentro de duas horas. Estamos a vinte milhas do litoral.
− Qual o seu nome, capitão?
− Engenheiro Mourão, o senhor pode me chamar de Capitão.
− Qual o nosso destino?
− Ilha da Trindade, Engenheiro Rodrigues.
− Ilha da Trindade? Pelo que sei não tem nada lá. Não estou gostando. Por que todo esse mistério? Quando chegaremos lá?
− Em quatro dias. Não se preocupe, Engenheiro Penido, minhas ordens são para lhes proporcionar uma viagem confortável e inesquecível. Bem, senhores, teremos muito tempo para esclarecer todos os pontos. Tenho umas tarefas e proponho que os senhores tomem uma bebida no convés, enquanto esperam o jantar. Asseguro-lhes que teremos um verdadeiro banquete, pois nossa comissária, Frau Vyntra é, na verdade, uma grande chef. Com licença.
− Alguém sabe quem é este “Engenheiro” misterioso?
− Não faço a menor idéia, Paulo, sem dúvida é um cara muito rico.
− O convite que recebi dizia: “Roberto, conto com você para revivermos as aventuras de nosso cruzeiro de formatura.” Ele é da nossa turma, talvez um de nós.
− Foi uma viagem memorável. Ainda me lembro de cada detalhe.
− Você ficou a maior parte do tempo na cabine, Juliano. Vomitou até a alma.
− Foi só nos dois primeiros dias, depois eu me diverti à beça.
− Quem é o “Engenheiro”? É você, Roberto?
− Não tenho dinheiro para uma extravagância dessas. Se tivesse, Antônio, teria melhor uso para ele.
− O Alberto, que eu saiba, não é nenhum milionário. O Paulo está enrolado, como eu, em nossa sociedade. Resta o Juliano.
− Você descartou o Alberto muito depressa. Ele pode ter recebido uma herança.
− Você está querendo desviar o assunto, Juliano. Você é o principal suspeito, sua família é rica.
− Era, Antônio, a crise nos pegou de cheio.
− E este Capitão? Sua cara não me é estranha. Na nossa viagem não tinha um oficial grego?
− Você se lembra da Lola, Roberto? Que pernas! Ela parecia a Marlene Dietrich.
− Era Frida. Tinha um vozeirão.
− Lola, tenho certeza. Sonhei com ela a viagem inteira.
− Juliano, ela se chamava Frida Berthold, Lola era seu nome artístico.
− Bem, parece que o Alberto obteve informações privilegiadas.
− Pouco provável, Antônio, ele estava em lua de mel com a Flora. Seria um idiota se a trocasse pela Lola.
− Como está a Flora, Alberto. Vocês sumiram, não foram nas nossas festas de aniversário de formatura, numa mais vi vocês desde os anos 70.
− A Flora morreu no final do ano passado.
− Ô, Alberto, sinto muito.
− Como é que foi isso, rapaz?
− Câncer no útero. Durou um ano. Tempo suficiente para acabar com quarenta anos de ilusão. Me passa o whisky, Antônio. Você vive quarenta anos com uma pessoa e de fato não a conhece.
− O jantar está servido na sala de estar. Espero que gostem de “eisbein mit sauerkraut”.
− É ela, Antônio, a Lola. Bem apetecível ainda.
− Juliano, ela deve ter sessenta anos.
− Parece ter quarenta e cinco e não perdeu a chama no olhar.
− Como se chama a nossa cozinheira, Capitão?
− Frida Vyntra, minha esposa.
− Frida Berthold, Frida Vyntra. Ela não é a Lola que cantava durante os cruzeiros do Volendam da Holland American Lines, nos anos 70?
− Sim, Engenheiro Ferreira, fico lisonjeado que o senhor a ache atraente.
− Capitão, por onde você andava nessa época?
− Eu era o imediato do navio.
− Por que a Frida não vem nos fazer companhia? Parece que estamos em família.
− Não é muito apropriado, Engenheiro Guimarães, mas se os senhores não fazem objeção…
− Frida, venha se juntar a nós. Vamos fazer um brinde, champanhe para todos, Capitão. “Carpe diem quam minimum credula postero”.
− “Carpe diem.”
− Traduz pra nós, Alberto.
− “Colhe o instante, sem confiar no amanhã.”
− Lola, você se lembra de nós?
− Do Alberto, não poderia me esquecer. Sei que todos estavam naquela viagem, mas não me lembro dos nomes.
− E por que você não poderia se esquecer do Alberto, querida?
− Não me constranja, Loukas.
− Nós ficamos juntos por uma noite, naquela viagem, Capitão. Lola, me diga uma coisa, pra que contar tudo à Flora?
− Eu era muito jovem, Alberto. As passageiras hostilizavam as artistas, nos tratavam com desprezo. Nós estávamos apenas tentando ganhar a vida.
− Epa, a coisa está ficando esquisita. Abra o jogo, Alberto, o que está acontecendo aqui? Qual o objetivo real desta viagem? Isto é um acerto de contas?
− Você tem alguma dívida comigo, Roberto? Sua consciência está pesada?
− Então você é o tal “Engenheiro”; organizou tudo e nos trouxe a uma armadilha. O que você está pretendendo? Você me acusa de que?
− O que você fez, Antônio? Qual é a sua culpa?
− Cavalheiros, vamos manter a calma. Até o momento sabemos que a minha esposa dormiu com o Alberto, em sua viagem de núpcias. Como foi antes de nosso casamento, não tenho o que questionar. Frida contou à esposa do Alberto para se vingar do sentimento de desprezo. Flora então se sentiu no direito de uma desforra.
− Você, Capitão, certamente deu sua contribuição para a desforra?
− Qualquer cavalheiro faria o mesmo.
− A Flora ficou muito magoada com você, Alberto.
− Ela foi se consolar com você, Antônio?
− Comigo, com o Roberto, com o Paulo e com o Juliano, além do Capitão, enquanto você dormia embalado por Morfeu e Baco.
− Vocês eram os meus melhores amigos e me traíram, riram de mim e me apunhalaram pelas costas.
− Isto foi há quarenta anos, Alberto. Éramos jovens, estávamos embriagados de champanhe e do desejo de sorver a vida até a última gota.
− O que eu não consigo entender é porque a Flora me contou isto no seu leito de morte. Foi a última coisa que ouvi de seus lábios.
− Tome mais champanhe, Alberto. “Carpe diem”.
− “… quam minimum credula postero”.
Com estas palavras de Alberto a gravação termina.
***
4 comentários
marcelle em 04/03/2011 00:47
Amigo,que maravilha! Cada dia escrevendo com mais vontade!
E eu cada dia te admirando mais. Abraço, Marcelle
quemcontaumconto em 04/03/2011 21:24
Oi Marcelle, que bom que você gostou. O prazer de quem escreve e ser lido. Um abraço
Anônimo em 05/04/2011 21:14
quemcontaumconto em 10/04/2011 12:30
Pois é, Jair . As aulas de latim do ginásio serviram para alguma coisa. Hoje a moçada não tem a chance que tivemos de uma educação mais clássica.
Obrigado pela visita e volte de vez em quando pois tem sempre novidade. Espero pelo seu blog.
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