Augusto acordou no meio da noite, assustado com o barulho vindo do quarto dos pais. Procurou tia Ção na cama ao lado. Ela não estava. Saiu andando pela casa e ouviu sua mãe chorando. Lucinha estava deitada na cama de casal, muito quieta e muito branca. Os pais estavam abraçados e tia também chorava, acariciando os cabelos de Lucinha. Alarmado, Augusto pegou a máscara de oxigênio em cima da cômoda e correu para colocá-la no nariz da irmã.

− Isto não vai adiantar mais, meu filho.

Augusto sentou-se na cama e abraçou Lucinha. Por muito tempo ele sentiu em seu peito a friagem que vinha do corpo da irmãzinha.

***

Sua lembrança mais antiga era sua mãe, com a Lucinha no colo, dizendo-lhe:

− Vai brincar lá fora, Guto, deixe a Lucinha dormir.

Devia ter uns três anos.

Todos os dias, Augusto esperava, no portão, o pai chegar do trabalho. Montava nos seus ombros e ia alisando sua careca até o quarto do casal. Seu pai o colocava no chão, beijava a mãe e pegava a Lucinha no colo. Ele ficava por ali, brincando com um carrinho e ouvindo a mãe relatar como tinha sido o dia da filha.

Tia Ção vinha buscá-lo para tomar sopa. Ção era irmã de Dora, tinha uns quinze anos, era loura e sardenta. Veio morar com eles um pouco antes da Lucinha  nascer. Com a doença da menina, acabou ficando para ajudar. Augusto adorava a tia, estava sempre ao redor dela. Ela lhe dava comida, dava banho, acudia quando ele levava um tombo, balançava na gangorra com ele no colo, fazia cosquinha na sua barriga, contava história pra ele dormir.

Augusto sentia falta da mãe. Entrava no quarto chamando por ela. Seu colo estava sempre ocupado por aquela irmã chorona. Desistiu de procurá-la e se agarrou à tia Ção.

Quando Lucinha fez dois anos e começou a andar, Augusto, com cinco anos, encontrou uma companheira para brincar e, principalmente para proteger. Fazia tudo que a irmã queria. Aprendeu a colocar em seu rostinho, a máscara de oxigênio, sempre que ela começava a ofegar.

Nas freqüentes crises de Lucinha, Augusto ficava triste, amuado num canto da casa. Uma noite acordou chorando.

− Tá sentindo alguma coisa, Guto, o que foi?

− A Lucinha vai morrer, tia Ção?

− Não, Guto, ela vai ficar boa.

− Eu vou morrer igual ao Vovô?

− O Vovô era velho. Você é novinho.

− Criança não morre, tia Ção?

− Vem cá, deita aqui comigo, vou contar uma história.

Aos sete anos Augusto entrou para a escola. Abriu-se para ele um mundo novo. Ele aprendera a abrir mão das coisas para a irmã. Teve de aprender a conviver com outras crianças em pé de igualdade, mas conservava uma grande habilidade de conciliação.

Augusto foi morar na casa do tio Juvenal, quando seus pais foram para São Paulo, atrás de um tratamento especializado para Lucinha. Tia Ção se casou e foi morar em Itajubá. Ele se adaptou à nova situação, apesar da falta que sentia da família.

Quando os pais voltaram para Santa Rita e tia Ção veio de Itajubá e assumiu os cuidados da casa, Augusto percebeu que ia perder a irmãzinha. Cada vez que voltava da escola, quando virava a esquina de sua rua, verificava se em frente de sua casa não tinha uma ambulância ou um carro funerário.

***

Dias depois do enterro de Lucinha, sua mãe foi para a casa da Vovó, em Belo Horizonte, tia Ção voltou para Itajubá, seu pai se entregou ao trabalho e Augusto continuou na sua solidão. Sua vez de ter a atenção dos pais ainda não tinha chegado.

Sua mãe voltou de Belo Horizonte mais alegre. Trouxe para ele uma carreta de madeira igualzinha às que ele via passar na rodovia, até lona ela tinha. Mais o maior presente foi o olhar carinhoso e o abraço prolongado.

Um dia seu pai o levou para pescar no Sapucaí. Era a primeira vez que os dois faziam um programa só deles. Geraldo era um bom pescador, ensinou Guto a iscar o anzol e a fisgar o peixe quando ele beliscava a isca. Foi com alegria que ele pescou seu primeiro peixe. Ficaram calados. Augusto se lembrou da Lucinha e começou a chorar.

− Que foi, Guto.

− Estou tão feliz aqui com o senhor e a Lucinha está sozinha, lá no cemitério.

Geraldo abraçou o filho.

− Não sinta culpa porque está feliz, meu filho. Também estou triste, mas a vida continua.