O vagão do Noturno estava lotado. A maioria dos passageiros embarcou em Ipatinga, como Paulo e Raquel.  Paulo não conseguira um leito; decidiu, com Raquel, ir de poltrona mesmo para não terem de passar o Natal longe de suas famílias. Raquel, com a Letícia no colo, fechara os olhos na esperança de cochilar, ao menos. Era impossível.
No banco da frente o Capitão Müller discorria, numa altura insuportável, sobre o AI 5 para o Dr. Sérgio:

− Finalmente a revolução abandonou sua timidez.

Todos estavam incomodados com aquela conversa que não os deixava dormir mas quem iria reclamar do chefe da segurança da Empresa?

− Gostaria de estar na ativa, participando da luta. A hérnia de disco me tirou muito cedo da carreira, nesta altura já seria coronel. Até hoje não posso ouvir uma banda de música tocar um dobrado, meus olhos se enchem d’água. Aos quarenta anos o Capitão era um homem de ombros largos, cabelos claros e olhos azuis, denunciando sua ascendência germânica. Adaptara-se com muito custo à vida civil, mas não dispensava a jaqueta verde-oliva.

− Sua participação tem sido muito importante − bajulou o Dr. Sérgio. – O senhor ajudou a limpar a Baixada.

Dr. Sérgio era bom médico, mas tinha uma ambição doentia pelo poder. A amizade com o Capitão poderia lhe dar a chefia do serviço médico da Empresa. Grandes entradas denunciavam uma calvície iminente o que não atrapalhava seu sucesso com as mulheres.

Com preocupação, Raquel sussurrou ao ouvido de Paulo:

− A Terezinha me disse que na chegada a BH eles recolhem as carteiras de identidade e consultam uma lista, se o nome estiver nela a pessoa vai direto pro DOPS. Será que você corre algum risco?

O rosto largo de Raquel, seus olhos castanhos emoldurados pelas sobrancelhas grossas e arqueadas, os lábios carnudos conservavam toda sua beleza, mas a aflição crispava seu semblante.

− Não, querida, eu não fiz nada − Paulo tentava ser convincente. Lembrava-se do curso de mecânica que organizara com o Sindicato.

− E suas reuniões com o sindicato?

− Não, Raquel, o curso nem chegou a funcionar. Isso aconteceu em 63, com certeza já esqueceram , são cinco anos.

Paulo fechou os olhos, queria encerrar aquela conversa sussurrada. Fora militante da JUC, nos tempos de escola, e tentara conciliar sua atuação como engenheiro e empregado de uma grande empresa com seus ideais. Agora tinha medo das consequências.

− Ditadura… eles nos forçaram a isso. Não queríamos uma ditadura. Era só uma refrega, limpeza rápida do terreno e tudo voltaria ao normal, mas eles insistiram na subversão, no confronto.

O Capitão Müller dizia isto com os olhos brilhando de prazer.

− Há males que vêm pra bem, disse o Dr. Sérgio. Agora poderemos passar este pais a limpo.

O Capitão Müller engoliu azedo aquele “nós”.

− É uma tarefa e tanto, mas o exército tem força moral e competência para a empreitada.

Paulo queria parar de ouvir aquela conversa. A frustração, a raiva, a impotência e, principalmente, o medo lhe tiravam o fôlego. Abotoou o blusão, a temperatura estava baixando, eles deviam estar na altura de Barão de Cocais. Viu que Raquel estava chorando, seu desespero aumentou.

− Se você for preso e perder o emprego, o que será de nós?

− Pelo amor de Deus, não vai acontecer nada disso.

Letícia acordou, sugou com sofreguidão o seio oferecido. Paulo ficou enternecido com a visão da mãe alimentando sua filha. Ela era linda, risonha, ativa. Seus olhos devoravam a novidade do mundo cheio de luz, cores e sons. Quanta coisa para descobrir, quantas possibilidades. As duas dependiam dele. O peso o fez encolher−se. Em busca de consolo e de força, ele rezou.

− Tem que cassar, este congresso é um antro de subversivos e corruptos. Esse Márcio Moreira Alves devia ser fuzilado! − O Capitão estava colérico.

O chefe do trem anunciou Sabará, a próxima parada. Paulo sentiu um frio na barriga. Raquel olhou aflita para ele.

− Será… quem sabe você conversa com ele, pede ajuda?

− Nem pensar.

O Capitão levantou e olhou ostensivamente para o seio exposto de Raquel, pois Letícia voltara a dormir:

− Que menina linda! − E saiu rindo na direção da privada.

− Filho da puta – disse Paulo entre dentes − e você ainda quer que eu peça penico pra este…

O Dr. Sérgio se virou para trás olhando cobiçoso para Raquel, que abotoava a blusa:

− Algum problema, Paulo?

− É a lista, Dr. Sérgio, será que o Paulo…

− O Paulo tem culpa no cartório, Raquel?

− Não, mas tem muito dedo-duro por aí.

− A Raquel tá cismada à toa − disse Paulo irritado.

− Se você quiser, eu falo com o Müller, ele é gente boa.

− Precisa não, é cisma da Raquel − atalhou Paulo.

Quando o Capitão voltou ao lado de Sérgio, os dois passaram a conversar em voz baixa.  Virando-se para o Paulo, o Capitão provocou:

− Preparado para descer em BH?

− É claro, Capitão.

− Bom, quem não deve não teme, já quem deve vai ter que pagar, ah, isto vai…

Voltou a conversar, em voz baixa, com o Dr. Sérgio.

A pobreza da periferia de BH desfilava do lado de fora do trem. O ar se negava a encher os pulmões de Paulo.

− Você devia ter ficado calada. − A aflição transparecia nos olhos molhados de Raquel.

O trem apitou ao passar pelo viaduto da Silviano Brandão. O ruído das rodas, tropeçando nas emendas dos trilhos, ficava cada vez mais alto. As batidas do coração de Paulo superavam o barulho exterior. Ao descer do trem, carregando as malas e toda a tralha que acompanha a viagem de um bebê, Paulo ouviu, atrás de si, um fragmento da fala do Capitão Müller: “…nada, é um porcaria dum inocente útil… um berdamerda…”